quarta-feira, março 30, 2005

O mar é longe, mas somos nós o vento


Foto de Miguel Costa


O mar é longe, mas somos nós o vento;
e a lembrança que tira , até ser ele,
é doutro e mesmo, é ar da tua boca
onde o silêncio pasce e a noite aceita.
Donde estás, que névoa me perturba
mais que não ver os olhos da manhã
com que tu mesma a vês e te convém?
Cabelos, dedos, sal e a longa pele,
onde se escondem a tua vida os dá;
e é com mãos solenes, fugitivas,
que te recolho viva e me concedo
a hora em que as ondas se confundem
e nada é necessário ao pé do mar.


Pedro Tamen

quinta-feira, março 24, 2005


Foto de Miguel Costa

Raios de luz

.
Voltei a ouvir o canto do melro e a sentir a brisa no rosto.
Lentamente, acordo do longo inverno.
Mas ainda não sei se sou eu.

quarta-feira, março 23, 2005


Les coquelicots (Monet)

Povoamento

.
No teu amor por mim há uma rua que começa
nem árvores, nem casas existiam
antes que tu tivesses palavras
e todo eu fosse um coração para elas
Invento-te e o céu azula-se sobre esta
triste condição de ter de receber
dos choupos onde cantam
os impossíveis pássaros
a nova primavera.
Tocam sinos e levantam voo
todos os cuidados
Ó meu amor nem minha mãe
tinha assim um regaço
como este dia tem
E eu chego e sento-me ao lado
da primavera.


Ruy Belo

segunda-feira, março 21, 2005

Dia Mundial da Poesia por SMS




Apesar das ruínas e da morte
Onde sempre acabou cada ilusão
A força dos meus sonhos é tão forte
Que de tudo renasce a exaltação
E nunca as minhas mãos ficam vazias.

Sophia de Mello Breyner Andresen


Na sombra da montanha
Dormem os lagos verdes e calmos
E na tela da água o brilho do sol
Desdobra as cores do dia que nasce.

Poema celta


Talvez alguém possa imitar a perfeição de uma dália.

Rosário R.


...Milagre é o coração começar sempre no peito de outra vida.

Mia Couto


Se tanto me dói que as coisas passem
É porque cada instante em mim foi vivo
Na luta por um bem definitivo
Em que as coisas de amor se eternizassem.

Sophia M. B. Andresen

sábado, março 19, 2005


Foto de M. Clarinda Galante

Que é voar?

.
Que é voar?
É só subir no ar,
levantar da terra o corpo, os pés?
Isso é que é voar?
Não.

Voar é libertar-me,
é parar no espaço inconsistente
é ser livre, leve, independente
é ter alma separada de toda a existência
é não viver senão em não-vivência.

É isso voar?
Não.

Voar é humano
é transitório, momentâneo.

Aquele que voa tem de poisar em algum lugar
isso é partir
e não voltar.


Ana Hatherly

sexta-feira, março 18, 2005


Foto de Gil Lemos

Paraíso

.
Deixa ficar comigo a madrugada,
para que a luz do sol me não constranja.
Numa taça de sombra estilhaçada,
deita sumo de lua e de laranja.

Arranja uma pianola, um disco, um posto,
onde eu ouça o estertor de uma gaivota...
Crepite, em derredor, o mar de Agosto...
E o outro cheiro, o teu, à minha volta!

Depois, podes partir. Só te aconselho
que acendas, para tudo ser perfeito,
à cabeceira a luz do teu joelho,
entre os lençóis o lume do teu peito.

Podes partir. De nada mais preciso
para a minha ilusão do Paraíso.


David Mourão Ferreira

quinta-feira, março 17, 2005


The lovers (Magritte)

Não posso adiar o amor para outro século

.
Não posso adiar o amor para outro século
não posso
ainda que o grito sufoque na garganta
ainda que o ódio estale e crepite e arda
sob as montanhas cinzentas
e montanhas cinzentas.

Não posso adiar este abraço
que é uma arma de dois gumes amor e ódio.

Não posso adiar
ainda que a noite pese séculos sobre as costas
e a aurora indecisa demore
não posso adiar para outro século a minha vida
nem o meu amor
nem o meu grito de libertação.

Não posso adiar o coração.


António Ramos Rosa

quarta-feira, março 16, 2005

Pensando


.
Pensando que te vou ver
encho de sonhos os braços,
acendo os meus desejos,
apago em mim os cansaços,
espalho rimas no chão,
recolho versos e danças,
esqueço a nuvem escura,
lembro frescas madrugadas,
adormeço dúvidas, incerteza,
acordo as minhas esperanças,
silencio trovoadas,
abro a alma à ternura,
cerro os olhos da tristeza.
Pensando que te vou ver
pinto o céu azul de poemas,
escrevo AMOR em letras tristes,
elevo-me no infinito
e descubro que não existes.


Aceitando um repto que me fizeram, atrevo-me hoje a deixar, entre as palavras dos grandes, as minhas pobres palavras pequenas.
A foto foi enviada por uma amiga, mas desconheço o autor.

terça-feira, março 15, 2005


Foto de Rui Reis

Há palavras que nos beijam

.
Há palavras que nos beijam
Como se tivessem boca,
Palavras de amor, de esperança,
De imenso amor, de esperança louca.

Palavras nuas que beijas
Quando a noite perde o rosto,
Palavras que se recusam
Aos muros do teu desgosto.

De repente coloridas
Entre palavras sem cor,
Esperadas, inesperadas,
Como a poesia ou o amor.

(O nome de quem se ama
Letra a letra revelado
No mármore distraído,
No papel abandonado)

Palavras que nos transportam
Aonde a noite é mais forte,
Ao silêncio dos amantes
Abraçados contra a morte.



Alexandre O'Neill

segunda-feira, março 14, 2005


Lovers with flowers (Chagal)

Vivemos em cada amor

.
Vivemos em cada amor
Morremos em cada vida

Ciclo de luz

Nascemos em cada lágrima
Vivemos em cada beijo
Morremos em cada esquecimento



Poema enviado pelo meu amigo Vento

domingo, março 13, 2005


Pomba da Paz (Picasso)

Ode à Paz

.
Pela verdade, pelo riso, pela luz, pela beleza,
Pelas aves que voam no olhar de uma criança,
Pela limpeza do vento, pelos actos de pureza,
Pela alegria, pelo vinho, pela música, pela dança,
Pela branda melodia do rumor dos regatos,
Pelo fulgor do estio, pelo azul do claro dia,
Pelas flores que esmaltam os campos, pelo sossego dos pastos,
Pela exactidão das rosas, pela Sabedoria,
Pelas pérolas que gotejam dos olhos dos amantes,
Pelos prodígios que são verdadeiros nos sonhos,
Pelo amor, pela liberdade, pelas coisas radiantes,
Pelos aromas maduros de suaves outonos,
Pela futura manhã dos grandes transparentes,
Pelas entranhas maternas e fecundas da terra,
Pelas lágrimas das mães a quem nuvens sangrentas
Arrebatam os filhos para a torpeza da guerra,
Eu te conjuro ó paz, eu te invoco ó benigna,
Ó Santa, ó talismã contra a indústria feroz,
Com tuas mãos que abatem as bandeiras da ira,
Com o teu esconjuro da bomba e do algoz,
Abre as portas da História,
Deixa passar a Vida!

Natália Correia

sexta-feira, março 11, 2005


Foto de Cafer

Urgentemente

.
É urgente o amor.
É urgente um barco no mar.

É urgente destruir certas palavras,
ódio, solidão e crueldade,
alguns lamentos
muitas espadas.

É urgente inventar alegria,
multiplicar os beijos, as searas,
é urgente descobrir rosas e rios
e manhãs claras.

Cai o silêncio nos ombros e a luz
impura, até doer.
É urgente o amor, é urgente
permanecer.


Eugénio de Andrade

quinta-feira, março 10, 2005


Foto de Ricardo Martinelli

Rumor de água

.
Rumor de água
na ribeira ou no tanque?
O tanque foi na infância
minha pureza refractada.
A ribeira secou no verão.
Rumor de água
no tempo e no coração.
Rumor de nada.


Carlos de Oliveira

terça-feira, março 08, 2005


Foto de Disconnection notice

Vazio

.
Inútil, vazio, oco,
assim está o meu peito
a cada dia que passa
a cada sonho desfeito.
Perdi o norte, a esperança,
uma andorinha sem asas.
Sinto crescer as raízes
que me prendem, asfixiam
e me queimam como brasas.
Não vejo nem posso ouvir,
das sombras que me rodeiam
é impossível fugir.
Sei que existem outros mundos,
que há locais onde o sol
continua a brilhar
e os pássaros chilreiam,
mas aqui onde me encontro
os silêncios são profundos.
Inútil, vazio, oco,
assim está o meu peito.
Não encontro solução,
no deserto onde me deito
está desfeita a ilusão,
só me resta um grito rouco...
Onde estás meu coração?
Tão vazio o meu peito.

segunda-feira, março 07, 2005

Coração sem imagens

.
Deito fora as imagens.
Sem ti para que me servem
as imagens?

Preciso habituar-me
a substituir-te
pelo vento,
que está em toda a parte
e cuja direcção
é igualmente passageira
e verídica.

Preciso habituar-me ao eco dos teus passos
numa casa deserta,
ao trémulo vigor de todos os teus gestos
invisíveis,
à canção que tu cantas e que mais ninguém ouve
a não ser eu.

Serei feliz sem as imagens.
As imagens não dão
felicidade a ninguém.

Era mais difícil perder-te,
e, no entanto, perdi-te.

Era mais difícil inventar-te,
e eu te inventei.

Posso passar sem as imagens
assim como posso
passar sem ti.

E hei-de ser feliz ainda que
isso não seja ser feliz.


Raul de Carvalho

domingo, março 06, 2005

Porque os outros se mascaram mas tu não


Sophia vista por Arpad Szenes



Porque os outros se mascaram mas tu não
Porque os outros usam a virtude
Para comprar o que não tem perdão
Porque os outros têm medo mas tu não
Porque os outros são os túmulos caiados
Onde germina calada a podridão
Porque os outros se calam mas tu não

Porque os outros se compram e se vendem
E os seus gestos dão sempre dividendo
Porque os outros são hábeis mas tu não

Porque os outros vão à sombra dos abrigos
E tu vais de mãos dadas com os perigos
Porque os outros calculam mas tu não.



Sophia de Mello Breyner Andresen

sábado, março 05, 2005


Reclining nude (Modigliani)

O corpo não espera

.
O corpo não espera. Não. Por nós
ou pelo amor. Este pousar de mãos,
tão reticente e que interroga a sós
a tépida secura acetinada,
a que palpita por adivinhada
em solitários movimentos vãos;
este pousar em que não estamos nós,
mas uma sêde, uma memória, tudo
o que sabemos de tocar desnudo
o corpo que não espera; este pousar
que não conhece, nada vê, nem nada
ousa temer no seu temor agudo.

Tem tanta pressa o corpo! E já passou,
quando um de nós ou quando o amor chegou.


Jorge de Sena

sexta-feira, março 04, 2005

Linha de rumo

.
Quem não me deu Amor, não me deu nada.
Encontro-me parado...
Olho em meu redor e vejo inacabado
O meu mundo melhor.

Tanto tempo perdido...
Com que saudade o lembro e o bendigo:
Campo de flores
E silvas...

Fonte da vida fui. Medito. Ordeno.
Penso o futuro a haver.
E sigo deslumbrado o pensamento
Que se descobre.

Quem não me deu Amor, não me deu nada.
Desterrado,
Desterrado prossigo.
E sonho-me , sem Pátria e sem Amigos,
Adrede.


Ruy Cinatti

quinta-feira, março 03, 2005

Santo e senha


Foto de Pita aqui


Deixem passar quem vai na sua estrada
Deixem passar
Quem vai cheio de noite e de luar
Deixem passar e não lhe digam nada.

Deixem, que vai apenas
Beber água de sonho a qualquer fonte;
Ou colher açucenas
A um jardim que ele lá sabe, ali defronte.

Vem da terra de todos, onde mora
E onde volta depois de amanhecer.
Deixem-no pois passar, agora

Que vai cheio de noite e solidão
Que vai ser uma estrela no chão.


Miguel Torga

quarta-feira, março 02, 2005

Ode pagã


Foto de Miguel Costa aqui


Viver! - O corpo nu, a saltar, a correr
Numa praia deserta, ou rolando na areia,
Rolando, até ao mar... ( que importa o que a alma anseia?)
Isto sim, é viver!

O Paraíso é nosso e está na terra. Nós
É que temos olhar velado de incerteza;
E julgamos ouvir a voz da Natureza
Ouvindo a nossa voz.

Ilusões! O triunfo, o amor, a poesia...
Não merecem, sequer, um dia à beira-mar
Vivido plenamente, - a sorver, a beijar
O vento e a maresia.

Viver é estar assim, a fronte ao céu erguida,
Os membros livres, as narinas dilatadas;
Com toda a Natureza, em espírito, as mãos dadas
- O resto não é vida.

Que venha , pois, a brisa e me trespasse a pele,
Para melhor poder compreendê-la e amá-la!
Que a voz do mar me chame e ouvindo a sua fala,
Eu vá e seja dele!

Que o sol penetre bem na minha carne e a deixe
Queimada para sempre! As ondas, uma a uma,
Rebentem no meu corpo e eu fique, ébrio de espuma,
Contente como um peixe!


Carlos Queirós