quinta-feira, junho 30, 2005

Reflexos


Foto daqui



Olho-te pelo reflexo
Do vidro
E o coração da noite

E o meu desejo de ti
São lágrimas por dentro,
Tão doídas e fundas
Que se não fosse:

o tempo de viver;
e a gente em social desencontrado;
e se tivesse a força;
e a janela ao meu lado
fosse alta e oportuna,

invadia de amor o teu reflexo
e em estilhaços de vidro
mergulhava em ti.



Ana Luísa Amaral

quarta-feira, junho 29, 2005

O último amor


Foto de Pedro Borges aqui


Era o último amor. A casa fria,
os pés molhados no escuro chão.
Era o último amor e não sabia
esconder o rosto em tanta solidão.

Era o último amor. Quem adivinha
o sabor breve pela escuridão?
Quem oferece frutos nessa neve?
Que rasga com ternura o que foi verão?

Era o último amor. O mais perfeito
fulgor do que viveu sem as palavras.
Era o último amor, perfil desfeito
entre lumes e vozes e passadas.

Era o último amor e não sabia
que os pés à terra nua oferecia.



Luis Filipe Castro Mendes

segunda-feira, junho 27, 2005

Volta até mim no silêncio da noite


Foto enviada por Vento (autor desconhecido)



Volta até mim no silêncio da noite
a tua voz que eu amo, e as tuas palavras
que eu não esqueço. Volta até mim
para que a tua ausência não embacie
o vidro da memória, nem o transforme
no espelho baço dos meus olhos. Volta
com os teus lábios cujo beijo sonhei num estuário
vestido com a mortalha da névoa; e traz
contigo a maré da manhã com que
todos os náufragos sonharam.


Nuno Júdice

domingo, junho 26, 2005

Louvor e glosa de Salvatore Adamo


Foto de Miguel Costa aqui


Esquecerei primeiro a tua infância
tal como a tenteariam os meus dedos
nos teus dedos febris (depois da seda
dos teus dedos nos dedos da manhã)

e em cada rio o rio que se levanta
da solidão da terra à tua estrela
desmedindo em silêncio o seu segredo
na solidão do meu amor andante

Esquecerei a casa o nome e a data
(ou que a morte se vai se é ida a vida)
para esquecer por fim que me esqueci

na noite que partindo para chorar-te
(de tão sem fundo intacta) me deixavas
quando o sol se apagava atrás de ti



Miguel Serras Pereira

quinta-feira, junho 23, 2005

Ainda existem as ruas onde por acaso


Foto de Armindo aqui


Ainda existem as ruas onde por acaso
nos encontrávamos? Tantos dias correram
num ano, viam-me em dias de mais
desejo apressar os passos, olhar para
o relógio, pôr falhando os discos
nas capas. Parecia ter sido só
uma despedida de um dia para o outro. Agora
se escrevo é porque és apenas uma imagem
da memória, pouco faltará para que
guarde de ti um risco, um embaraço.
E sempre chegarei a tactear o rosto,
fingir que me lembro de alguns sinais,
das poucas palavras necessárias para que
eu aceitasse, duas vezes o meu corpo
esteve com o teu, outras mais do que
podes pensar. Na volta de uma esquina
não reparo, tropeço, encontro o último
sorriso começa a nascer.



Helder Moura Pereira

terça-feira, junho 21, 2005

Agora que as palavras secaram


Foto de André Paiva aqui


Agora que as palavras secaram
e se fez noite
entre nós dois,
agora que ambos sabemos
da irreversibilidade
do tempo perdido,
resta-nos este poema de amor e solidão.

No mais é o recalcitrar dos dias,
perseguindo-nos, impiedosos,
com relógios,
pessoas,
paredes demasiado cinzentas,
todas as coisas inevitavelmente
lógicas.

Que a nossa nem sequer foi uma história
diferente.
A originalidade estava toda na pólvora
dos obuses, no circunstanciado
afivelar
dos sorrisos à nossa volta
e no arcaísmo da viela onde fazíamos amor.


Eduardo Pitta

sexta-feira, junho 17, 2005

Esquece-te de mim, Amor


Foto de Ines FS aqui


Esquece-te de mim, Amor,
das delícias que vivemos
na penumbra daquela casa.
Esquece-te.
Faz por esquecer
o momento em que chegámos,
assim como eu esqueço
que partiste,
mal chegámos,
para te esqueceres de mim,
esquecido já
de alguma vez termos chegado.


António Mega Ferreira

terça-feira, junho 14, 2005

As palavras interditas


Foto in Público


Os navios existem e existe o teu rosto
encostado ao rosto dos navios.
Sem nenhum destino flutuam nas cidades,
partem no vento, regressam nos rios.

Na areia branca, onde o tempo começa,
uma criança passa de costas para o mar.
Anoitece. Não há dúvida , anoitece.
É preciso partir, é preciso ficar.

Os hospitais cobrem-se de cinza.
Ondas de sombra quebram nas esquinas.
Amo-te... E abrem-se janelas
mostrando a brancura das cortinas.

As palavras que te envio são interditas
até, meu amor, pelo halo das searas;
se alguma regressasse, nem já reconhecia
o teu nome nas minhas curvas claras.

Dói-me esta água, este ar que se respira,
dói-me esta solidão de pedra escura,
e estas mãos nocturnas onde aperto
os meus dias quebrados na cintura.

E a noite cresce apaixonadamente.
Nas suas margens vivas, desenhadas,
cada homem tem apenas para dar
um horizonte de cidades bombardeadas.


Eugénio de Andrade

domingo, junho 12, 2005

Madeira


Foto de Rui Delgado aqui


Quero beijar os teus lábios de pedra,
a água azul e profunda onde os teus
seios sem mácula se unem às minhas
mãos,
quero fundir-me em ti,
minha doce amante do desejo antigo,
quero mergulhar nos cabelos húmidos das
tuas raízes,
quero subir lentamente o teu corpo frio,
fendido,
quero fazer em ti,
nos teus jardins inclinados,
um país de filhos belos, de animais de
silêncio e bondade,
quero regressar a ti,
ao mistério das levadas, das falésias,
dos ventos que batem nos pássaros de aço
e nas tuas tranças,
quero que me toques amorosamente com
os teus dedos esguios,
com as tuas canas doces,
quero o mel, a estrelícia, o pão escuro sobre
as mesas de toalhas loucas bordadas pelas
mulheres de outrora,
senhoras nossas das dores e do entardecer,
quero levar-te comigo para além, para
sempre,
quero que deixes em mim o fruto das tuas
árvores da alegria,
todos os sinais da ternura que o tempo não
consumiu,
minha eterna amante junto ao mar,
quero morrer em ti,
e em ti nascer de novo.


José Agostinho Baptista


(Para o Duarte , porque penso que gostará de ler (reler?) este poema que fala da sua terra de magia.)

quarta-feira, junho 08, 2005

Vigílias





Quando aqui não estás
o que nos rodeou põe-se a morrer

a janela que abre para o mar
continua fechada só nos sonhos
me ergo
abro-a
deixo a frescura e a força da manhã
escorrem pelos dedos prisioneiros
da tristeza
acordo
para a cegante claridade das ondas

um rosto desenvolve-se nítido
além
rasando o sal da imensa ausência
uma voz

quero morrer
com uma overdose de beleza

e num sussurro o corpo apaziguado
perscruta esse coração
esse
solitário caçador


Al Berto

segunda-feira, junho 06, 2005

Amor como em casa


Foto de Miguel Costa aqui


Regresso devagar ao teu
sorriso como quem volta a casa. Faço de conta que
não é nada comigo. Distraído percorro
o caminho familiar da saudade,
pequeninas coisas me prendem,
uma tarde num café, um livro. Devagar
te amo e às vezes depressa,
meu amor, e às vezes faço coisas que não devo,
regresso devagar a tua casa,
compro um livro, entro no
amor como em casa.


Manuel António Pina

sábado, junho 04, 2005

Lamento por Diotima


Foto de Pedro Lima aqui


o que vamos fazer amanhã
neste caso de amor desesperado?
ouvir música romântica
ou trepar pelas paredes acima?

amarfanhar-nos numa cadeira
ou ficar fixamente diante
de um copo de vinho ou de uma ravina?
o que vamos fazer amanhã

que não seja um ajuste de contas?
o que vamos fazer amanhã
do que mais se sonhou ou morreu?
numa esquina talvez te atropelem,

num relvado talvez me fuzilem
o teu corpo talvez seja meu,
mas que vamos fazer amanhã
entre as árvores e a solidão?


Vasco Graça Moura