quarta-feira, agosto 31, 2005

Eu não voltarei


Foto de Miguel Costa aqui


Eu não voltarei. E a noite
morna, serena, calada,
adormecerá tudo, sob
sua lua solitária.

Meu corpo estará ausente,
e pela janela alta
entrará a brisa fresca
a perguntar por minha alma.

Ignoro se alguém me aguarda
de ausência tão prolongada,
ou beija a minha lembrança
entre carícias e lágrimas.

Mas haverá estrelas, flores
e suspiros e esperanças,
e amor nas alamedas,
sob a sombra das ramagens.

E tocará esse piano
como nesta noite plácida,
não havendo quem o escute,
a pensar, nesta varanda.


Juan Ramón Jímenez

terça-feira, agosto 30, 2005

Não te quero senão porque te quero


Foto de Pedro Nogueira aqui



Não te quero senão porque te quero,
e de querer-te a não te querer chego,
e de esperar-te quando não te espero,
passa o meu coração do frio ao fogo.
Quero-te só porque a ti te quero.
Odeio-te sem fim e odiando te rogo,
e a medida do meu amor viajante,
é não te ver e amar-te
como um cego.

Talvez consumirá a luz de Janeiro,
seu raio cruel meu coração inteiro,
roubando-me a chave do sossego,
nesta história só eu me morro,
e morrerei de amor porque te quero,
porque te quero, amor,
a sangue e fogo.


Pablo Neruda

domingo, agosto 28, 2005

Podes?


Foto de Jose Luis Mendes aqui


Podes vender-me o ar que passa entre os teus dedos
E golpeia o teu rosto e desalinha teus cabelos?
Talvez possas vender-me cinco moedas de vento?
Ou mais, talvez uma tormenta?
Acaso me venderias ar fino - não todo -
O ar que percorre teu jardim de flor em flor
E sustenta o vôo dos pássaros?
Dez moedas de ar fino, me venderias?

O ar gira e passa na asa da mariposa.
Ninguém o possui. Ninguém!

Podes vender-me céu?
Céu azul por vezes, ou cinza, também às vezes,
Uma parte do teu céu, o que compraste, pensas tu,
Com as árvores do teu sítio, como quem compra o teto com a casa?
Podes vender-me um dólar de céu?
Dois quilómetros de céu, um pedaço,
O que puderes, do "teu" céu?

O céu está nas nuvens. Altas passam as nuvens.
Ninguém o possui. Ninguém!

Podes vender-me chuva?
A água que forma tuas lágrimas, molha tua língua?
Podes vender-me um dólar de água da fonte?
Uma nuvem crespa, me venderias?
Ou, quem sabe, água chovida das montanhas?
Ou água dos charcos, abandonada aos cães?
Ou uma légua de mar, talvez um lago?

A água cai e corre. A água corre. Passa.
Ninguém a possui. Ninguém!

Podes vender-me terra?
A profunda noite das raízes, dentes de dinossauros,
A cauda esparsa de longínquos esqueletos?
Podes vender-me selvas já sepultadas, aves mortas,
Peixes de pedra, enxofre dos vulcões?
Milhões e milhões de anos em espiral crescendo?
Podes vender-me terra?
Podes vender-me?
Podes?

A tua terra é terra minha, todos os pés se apoiam nela.
Ninguém a possui. NINGUÉM!



Nicolás Guillén
(em tradução brasileira)

sábado, agosto 27, 2005

As seis cordas


Foto de Maria aqui


A guitarra
faz soluçar os sonhos.
O soluço das almas
perdidas
foge por sua boca
redonda.
E, assim como a tarântula,
tece uma grande estrela
para caçar suspiros
que bóiam no seu negro
abismo de madeira.


Federico Garcìa Lorca

sexta-feira, agosto 26, 2005

Incêndio


Foto de Miguel Costa aqui


se conseguires entrar em casa e
alguém estiver em fogo na tua cama
e a sombra duma cidade surgir na sombra do soalho
e do tecto cair uma chuva brilhante
contínua e miudinha - não te assustes

são os teus antepassados que por um momento
se levantaram da inércia dos séculos e vêm
visitar-te

diz-lhes que vives junto ao mar onde
zarpam navios carregados com medos
do fim do mundo - diz-lhes que se consumiu
a morada de uma vida inteira e pede-lhes
para murmurarem uma última canção para os olhos
e adormece sem lágrimas - com eles no chão



Al Berto

quarta-feira, agosto 24, 2005

Nada


Foto de Miguel Costa aqui



Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.

...

Álvaro de Campos




Um dos meus sonhos concretizo-o aqui, no jogo das palavras que traduzem e criam sentimentos e emoções, a poesia.
Procuro deixar o rasto do que leio e gosto.
Nos últimos dias tenho estado ausente, não por estar de férias, ou doente, ou porque tenha tido muito que fazer. Simplesmente, me faltou a vontade, por inércia ou desalento.
Agradeço a todos os que me lêem e, em especial, aos que deixam o gesto de um comentário.
Voltarei em breve, quando os sonhos voltarem a ser mais fortes que o "nada".

domingo, agosto 14, 2005

Canção dos rapazes da ilha


Foto de Pedro Palma aqui


Eu sei que fico.
Mas o meu sonho irá
Levado pelo vento, pelas nuvens, pelas asas.

Eu sei que fico
Mas o meu sonho irá...

Eu sei que fico
Mas o meu sonho irá
Nos frutos, nos colares
E nas fotografias da terra,
Comprados por turistas estrangeiros
Felizes e sorridentes.
Eu sei que fico mas o meu sonho irá...

Eu sei que fico
Mas o meu sonho irá
Metido na garrafa bem rolhada
Que um dia hei-de atirar ao mar.

Eu sei que fico
Mas o meu sonho irá...

Eu sei que fico
Mas o meu sonho irá
Nos veleiros que desenho na parede.



Aguinaldo Fonseca
(poeta de Cabo Verde)

sexta-feira, agosto 12, 2005

Visão


Homeward ( R. L. Cairns) aqui


Vi-te passar, longe de mim, distante,
Como uma estátua de ébano ambulante
Ias de luto, doce toutinegra,
E o teu aspecto pesaroso e triste
Prendeu minha alma, sedutora negra;
Depois, cativa de invisível laço,
(O teu encanto , a que ninguém resiste)
Foi-te seguindo o pequenino passo
Até que o vulto gracioso e lindo
Desapareceu longe de mim distante,
Como uma estátua de ébano ambulante.



Caetano Costa Alegre
(poeta de S. Tomé e Príncipe)

quarta-feira, agosto 10, 2005

Declaração


Imagem retirada da net (autor desconhecido)


As aves , como voam livremente
num voo de desafio!
Eu te escrevo, meu amor,
num escrever de libertação.

Tantas, tantas coisas comigo
adentro do coração
que só escrevendo as liberto
destas grades sem limitação.
Que não se fruste o sentimento
de o guardar em segredo
como liones, correm as águas do rio,
corram límpidos amores sem medo.

Ei-lo que to apresento
puro e simples - o amor
que vive e cresce ao momento
em que fecunda cada flor.

O meu escrever-te é
realização de cada instante,
germine a semente, e rompa o fruto
da Mãe- Terra fertilizante.



António Jacinto
(poeta angolano)

terça-feira, agosto 09, 2005

Confidência


Foto de Ernst Schutz aqui


Diz o meu nome
pronuncia-o
como se as sílabas te queimassem os lábios
sopra-o com a suavidade
de uma confidência
para que o escuro apeteça
para que se desatem os teus cabelos
para que aconteça

Porque eu cresço para ti
sou eu dentro de ti
que bebe a última gota
e te conduzo a um lugar
sem tempo nem contorno

Porque apenas para os teus olhos
sou gesto e cor
e dentro de ti
me recolho ferido
exausto dos combates
em que a mim próprio me venci

Porque a minha mão infatigável
procura o interior e o avesso
da aparência
porque o tempo em que vivo
morre de ser ontem
e é urgente inventar
outra maneira de navegar
outro rumo outro pulsar
para dar esperança aos portos
que aguardam pensativos

No húmido centro da noite
diz o meu nome
como se eu te fosse estranho
como se fosse intruso
para que eu mesmo me desconheça
e me sobressalte
quando suavemente
pronunciares o meu nome.


Mia Couto

segunda-feira, agosto 08, 2005

Com licença poética


Foto de Luis Lobo Henriques aqui



Quando nasci um anjo esbelto
desses que tocam trombeta, anunciou:
vai carregar bandeira.
Cargo muito pesado pra mulher,
esta espécie ainda envergonhada.
Aceito os subterfúgios que me cabem,
sem precisar mentir.
Não sou feia que não possa casar,
acho o Rio de Janeiro uma beleza e
ora sim, ora não, creio em parto sem dor.
Mas o que sinto escrevo. Cumpro a sina.
Inauguro linhagens, fundo reinos
- dor não é amargura.
Minha tristeza não tem pedigree,
já a minha vontade de alegria,
sua raiz vai ao meu mil avô.
Vai ser coxo na vida é maldição pra homem.
Mulher é desdobrável. Eu sou.


Adélia Prado

domingo, agosto 07, 2005

Ausência


Foto de Baciar


Eu deixarei que morra em mim o desejo de amar os teus olhos que são doces
Porque nada te poderei dar senão a mágoa de me veres eternamente exausto.
No entanto a tua presença é qualquer coisa como a luz e a vida
E eu sinto que em meu gesto existe o teu gesto e em minha voz a tua voz.
Não te quero ter porque em meu ser tudo estaria terminado.
Quero só que surjas em mim como a fé nos desesperados
Para que eu possa levar uma gota de orvalho nesta terra amaldiçoada
Que ficou sobre a minha carne como nódoa do passado.
Eu deixarei... tu irás e encostarás a tua face em outra face.
Teus dedos enlaçarão outros dedos e tu desabrocharás para a madrugada.
Mas tu não saberás que quem te colheu fui eu, porque eu fui o grande íntimo da noite.
Porque eu encostei minha face na face da noite e ouvi a tua fala amorosa.
Porque meus dedos enlaçaram os dedos da névoa suspensos no espaço.
E eu trouxe até mim a misteriosa essência de teu abandono desordenado.
Eu ficarei só como os veleiros nos pontos silenciosos.
Mas eu te possuirei como ninguém porque poderei partir.
E todas as lamentações do mar, do vento, do céu, das aves, das estrelas,
Serão a tua voz presente, a tua voz ausente, a tua voz serenizada.


Vinicius de Moraes

sábado, agosto 06, 2005

Nel mezzo del camin...


Foto de Ricardo Jorge Correia aqui


Cheguei. Chegaste. Vinhas fatigada
e triste, e triste e fatigado eu vinha.
Tinhas a alma de sonhos povoada,
e alma de sonhos povoada eu tinha.

E parámos de súbito na estrada
da vida: longos anos, presa à minha
a tua mão, a vista deslumbrada
tive da luz que teu olhar continha.

Hoje, segues de novo... Na partida,
nem o pranto os teus olhos humedece,
nem te comove a dor da despedida.

E eu, solitário, volto a face e tremo,
vendo o teu vulto que desaparece
na extrema curva do caminho extremo.


Olavo Bilac

quinta-feira, agosto 04, 2005

Eu sei, não te conheço, mas existes...


Foto da net (autor desconhecido)


Há algum tempo que aqui não venho. A tristeza afundou as letras, diluiu as palavras, fez-me esquecer a cor da esperança.
Regresso hoje para agradecer a todos os que, entretanto me visitaram, e deixaram comentários e apoio. Tentarei agradecer pessoalmente em cada um dos blogs.
No entanto, e porque o Desconhecido me deixou um poema de que muito gostei, apesar de também ser para mim desconhecido, aqui o deixo. Afinal é mesmo assim... na vida, como na net, não nos conhecemos, mas existimos... e conhecemos através das palavras a sensibilidade e a ternura de quem escreve ou escolhe poemas!




Eu sei, não te conheço, mas existes,
por isso os deuses não existem,
a solidão existe
e apenas me dói a tua ausência
como uma fogueira
ou um grito.

Não me perguntes como mas ainda me
lembro
quando no outono cresceram no teu peito
duas alegres laranjas que eu apertei nas
minhas mão
e perfumaram depois a minha boca.

Eu sei, não digas, deixa-me inventar-te,
não é um sonho, juro são apenas as
minhas mãos
sobre a tua nudez
como uma sombra no deserto.
É apenas este rio que me percorre há
muito e desagua em ti.
Porque tu és o mar que acolhe os meus
destroços.
É apenas uma tristeza inadiável, uma
outra maneira de habitares
em todas as palavras do meu canto.

Tenho construído o teu nome com todas
as coisas,
tenho feito amor de muitas maneiras,
docemente,
lentamente,
desesperadamente
à tua procura, sempre à tua procura
até me dar conta que estás em mim,
que em mim devo procurar-te,
e tu apenas existes porque eu existo
e eu não estou só contigo
mas é contigo que eu quero ficar só
porque é a ti,
a ti que eu amo.


Joaquim Pessoa