quarta-feira, março 29, 2006

Estamos juntos






Estamos juntos, quando a poesia nos toca
e entramos como reis no Reino do Silêncio...
Quando sentimos que tempo e risos e lágrimas e tudo
em nós madurece...

Estamos juntos , quando a noite é fria ou o calor custa a suportar,
quando a solidão é mais solidão
e vemos a palavra Amor na boca de tantos ser profanada...
Oh! Ainda que nos separem Oceanos,
estamos juntos, bem juntos, bem o sabes,
numa profunda companhia!



Cristovam Pavia

sábado, março 25, 2006

O rio apenas de leve


Foto de Brian aqui


O rio apenas de leve
se mexia e virava:
menino dormindo,
suspirava de calor.

- Que sabes (disse Eva) da corrente
do teu sangue?
escuta em mim:
sentirás este fundo rumor do mar,
ondas que tocam na terra,
regressam e voltam
para teu corpo.


António Osório

terça-feira, março 21, 2006

Povoamento


Primavera



No teu amor por mim há uma rua que começa.
Nem árvores nem casas existiam
antes que tu tivesses palavras
e todo eu fosse um coração para elas.
Invento-te e o céu azula-se sobre esta
triste condição de ter de receber
dos choupos onde cantam
os impossíveis pássaros
a nova primavera.
Tocam sinos e levantam voo
todos os cuidados.
Ó meu amor nem minha mãe
tinha assim um regaço
como este dia tem.
E eu chego e sento-me ao lado
da primavera.



Ruy Belo

sexta-feira, março 17, 2006

Amor


Amor ( Poesia experimental) aqui



de amor se faz amor
de nada mais resulta amor
que amor se faz de amor
de nada mais.
resulta amor de amor
que amor se faz de nada.
mais resulta que amor de amor
se faz amor de nada.
mais.



E. M. de Melo e Castro

domingo, março 12, 2006

Novembro apagou nas buganvílias






Novembro apagou nas buganvílias
seus nomes brancos, roxos,
escarlates.

É mais difícil regressar a casa:
o caminho disfarçou, emudeceu
seu rosto nos muros e nas grades.

- Por onde seguiremos
sem que o outono espesso nos
trespasse?


José Bento

sexta-feira, março 10, 2006

Poema





Alguma coisa onde tu parada
fosses depois das lágrimas uma ilha
e eu chegasse para dizer-te adeus
de repente na curva de uma estrada

alguma coisa onde a tua mão
escrevesse cartas para chover
e eu partisse a fumar
e o fumo fosse para se ler

alguma coisa onde tu ao norte
beijasses nos olhos os navios
e eu rasgasse o teu retrato
para vê-lo passar na direcção dos rios

alguma coisa onde tu corresses
numa rua com portas para o mar
e eu morresse
para ouvir-te sonhar



António José Forte

domingo, março 05, 2006

Não sei como dizer-te


La page blanche ( Magritte)


Não sei como dizer-te que minha voz te procura
e a atenção começa a florir, quando sucede a noite
esplêndida e vasta.
Não sei o que dizer, quando longamente teus pulsos
se enchem de um brilho precioso
e estremeces como um pensamento chegado. Quando,
iniciado o campo, o centeio imaturo ondula tocado
pelo pressentir de um tempo distante,
e na terra crescida os homens entoam a vindima
- eu não sei como dizer-te que cem ideias,
dentro de mim, te procuram.

Quando as folhas da melancolia arrefecem com astros
ao lado do espaço
e o coração é uma semente inventada
em seu escuro fundo e em seu turbilhão de um dia,
tu arrebatas os caminhos da minha solidão
como se toda a casa ardesse pousada na noite.
- E então não sei o que dizer
junto à taça de pedra do teu tão jovem silêncio.
Quando as crianças acordam nas luas espantadas
que às vezes se despenham no meio do tempo
- não sei como dizer-te que a pureza,
dentro de mim , te procura.

Durante a primavera inteira aprendo
os trevos, a água sobrenatural, o leve e abstracto
correr do espaço -
e penso que vou dizer algo cheio de razão,
mas quando a sombra cai da curva sôfrega
dos meus lábios, sinto que me faltam
um girassol, uma pedra, uma ave - qualquer
coisa extraordinária.
Porque não sei dizer-te sem milagres
que dentro de mim é o sol, o fruto,
a criança, a água, o deus, o leite, a mãe,
o amor,
que te procuram.



Herberto Helder
(excerto do poema Tríptico)

sábado, março 04, 2006

Nostalgia


Foto daqui


Hoje o bramido do mar chega até aqui, mesmo através da janela fechada.
As ondas desfazem-se em espuma.
Há um intenso cheiro a maresia.
Em mim permanece a nostalgia de outro mar... tu!

quarta-feira, março 01, 2006

Tu já me arrumaste


Foto de Judith Tomaz aqui


Tu já me arrumaste no armário dos restos
eu já te guardei na gaveta dos corpos perdidos
e das nossas memórias começamos a varrer
as pequenas gotas de felicidade
que já fomos.
Mas no tempo subjectivo
tu és ainda o meu relógio de vento
a minha máquina aceleradora de sangue
e por quanto tempo ainda
as minhas mãos serão para ti
o nocturno passeio do gato no telhado?


Isabel Meyrelles