terça-feira, outubro 31, 2006

O deserto inominável



Lembrando Merzouga...




O deserto é o silêncio depois do mar,
É o êxtase da luz sobre o coração da areia.
Vai-se e volta-se e nada se esquece.
Tudo se oculta para depois se dar a ver
No ponto em que os ventos se cruzam
E as almas gritam no fundo dos poços.
Os cestos sobem e descem prometendo água,
Uma frescura que derrete a febre.
Não são as tâmaras que adoçam a boca,
É a beleza das mulheres dissimulando
O desejo como um pecado sob a escuridão dos véus.
As serpentes assobiam ou cantam
Conforme o veneno que lhes molda o sangue,
Enroscam-se sobre as pedras
como fragmentos de lua à espera da manhã.
E a sombra alonga-se nas dunas
Ondulando rente às palmeiras
Como a última cobra do medo das crianças.
Não há ruído maior que este silêncio
Que se serve com tâmaras e com chá
Na mesa rasteira, sobre a terra molhada.
É no que não se nomeia que está o infinito.



José Jorge Letria

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quarta-feira, outubro 25, 2006

Enquanto prometemos o dia da coragem




1.

Não sei como se adivinham
tempestades. No fim de uma estação
as borboletas morrem e o vento quebra
em varandas altas. É por trás dos vidros
que nos defendemos contra todas as
surpresas.
Morremos de antemão. E já sob trovoada
assombra-nos o voo dos pássaros à chuva.



Carlos Poças Falcão

quinta-feira, outubro 19, 2006

Confidência


Foto de David Martins aqui


Diz o meu nome
pronuncia-o
como se as sílabas te queimassem os lábios
sopra-o com suavidade
para que o escuro apeteça
para que se desatem os teus cabelos
para que aconteça

Porque eu cresço para ti
sou eu dentro de ti
que bebe a última gota
e te conduzo a um lugar
sem tempo nem contorno

Porque apenas para os teus olhos
sou gesto e cor
e dentro de ti
me recolho ferido
exausto dos combates
em que a mim próprio me venci

Porque a minha mão infatigável
procura o interior e o avesso
da aparência
porque o tempo em que vivo
morre de ser ontem
e é urgente inventar
outra maneira de navegar
outro rumo outro pulsar
para dar esperança aos portos
que aguardam pensativos

No húmido centro da noite
diz o meu nome
como se eu te fosse estranho
como se fosse intruso
para que eu mesmo me desconheça
e me sobressalte
quando suavemente
pronunciares o meu nome


Mia Couto

sexta-feira, outubro 13, 2006

Destino

Há um provérbio africano que diz:

"Do contentar-se com pouco é que nasce a felicidade".

Talvez seja este o segredo do povo de Moçambique, o segredo que faz nascer um sorriso em cada rosto.
É uma "terra de boa gente", aquela que me acolheu, já o disse Vasco da Gama, quando chegou a Inhambane, algumas centenas de anos atrás.
O vento acaricia os coqueirais, a cor indefinível do mar varia entre os tons fortes do azul e do verde esmeralda, na escuridão profunda da noite cintilam mais as estrelas.




















Ao longo das estradas poeirentas, caminha um povo de gente boa, calcorreando distâncias incalculáveis, os pés descalços na terra vermelha.




















Ao vermos estas caminhadas, não podemos deixar de nos interrogar para onde caminha este povo, qual o destino deste país. Não podemos deixar de desejar que o destino seja uma vida menos dura, mas que mantenha o sorriso no rosto e a serenidade na alma.
Boa sorte, Moçambique.



















Voltei! Estou, de novo, aqui, nesta encosta de outro mar.
Para todos os que esperaram por mim, trago um abraço da terra moçambicana, onde o futuro e a paz se constroem em cada dia.

domingo, outubro 08, 2006

Regresso




Foi mais que uma viagem. Foi um percorrer de caminhos do passado. Foi um voo sobre futuros insondáveis.
Regresso agora, sobrevoando este continente negro, de mistérios e magias.
Fecho os olhos e vejo tudo, de novo. Os coqueiros agitados pelo vento, as longas estradas de pó vermelho, as aldeias de caniço onde as famílias se sentam no terreiro, ao fim da tarde, unidas na mesma história, o sorriso franco nos olhos das crianças.
E vejo o mar, tão azul e tão profundo, sulcado pela brisa morna, percorrido por barcos com esteiras de espuma, navegado pela serenidade das baleias.
E espreito as profundezas do mar, o deslizar dos tubarões e das raias gigantes para os quais não há pressas, nem urgências.
E ouço o mar, à noite, debaixo de um manto de estrelas como nunca vi outro igual.
Mais forte e mais doce que tudo, vejo, e quero, o sorriso mais bonito que conheço e os olhos da cor do céu e do mar.
Obrigada, Alex, por me teres aberto a porta do azul do Índico.