segunda-feira, janeiro 28, 2008

Uma troca simples de mãos para que a melodia vingue



Uma troca simples de mãos para que a melodia vingue
no andamento em que nos reconhecemos.
Uma fracção de tempo, um disparo
para que se entreteçam as pedras, os blocos de fogo.

Hoje disponho o mar ante os teus olhos, a tempestade,
a crueza sistemática das coisas, essa chuva que arde
neste efémero instante
que corta a costa, a barra, o farol.

De onde venho? Correspondo a que uivo
nesta solidão entre o abismo e coisa nenhuma?



Amadeu Baptista


Depois de uns dias em que a tempestade rugiu, volto à encosta esperando que a melodia vingue.
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segunda-feira, janeiro 21, 2008

Amizade (virtual?)



"A palavra Virtual – que vem do latim medieval Virtuale ou Virtualis, tendo mantido seu radical no latim Virtus (que significa virtude, força, potência) – é apontada na língua portuguesa, entre outras definições, como:
- O que existe como faculdade, porém sem exercício ou efeito atual
- Que não existe como realidade, mas sim como potência ou faculdade
- O que é suscetível de se realizar, potencial, possível
- Que eqüivale a outro, podendo fazer as vezes deste, em virtude ou atividade
- O que está predeterminado, e contêm todas as condições para sua realização "


Este é um dos resultados de uma pesquisa feita no Google sobre o significado da palavra "Virtual". Verifiquei que há várias opções sobre o significado desta palavra, conforme o contexto em que é utilizada. De qualquer modo, não fiquei elucidada sobre se se pode aplicar a sentimentos e , concretamente, à amizade.

Vem isto a propósito da atribuição que me foi feita do Prémio "Amitié Virtuelle", pela Sophiamar do A ver o mar... e pela Maria do O cheiro da ilha.


Seria impossível não ficar sensibilizada e agradecida pela atribuição deste prémio. A Amizade é um bem raro, que se deve cultivar . Não concordo , no entanto, em atribuir-lhe a categoria de virtual. As afinidades que se vão criando na net, entre pessoas que nunca se viram, e possívelmente nunca se verão, geram um sentimento que é bem real. O facto de nunca nos termos olhado , não impede que julgue conhecer as pessoas, com quem me cruzo na blogosfera ,de uma forma mais intensa do que a muitas que vejo todos os dias. Julgo não me enganar ao dizer que sei aquilo de que gostam, aquilo que pensam sobre determinados assuntos. Julgo que encontro, entre mim e algumas dessas pessoas, formas semelhantes de olhar a vida, e interesses idênticos. As palavras, que me deixam como comentário, são um reflexo do seu interior. Assim se gera um sentimento real de amizade. E sei que, no caso de necessidade de ajuda , ela virá sempre, nem que seja num simples "smile" , ou em meia dúzia de palavras de estímulo.

Obrigada, amiga Sophiamar. Obrigada, amiga Maria. A vocês duas, por este prémio que me atribuíram, e que retribuo com igual amizade. Obrigada, também, a todos os outros que passam com regularidade pela Encosta do Mar. Podem crer que a vossa presença contribui para tornar os meus dias mais brilhantes.

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AMIGO


Mal nos conhecemos

Inaugurámos a palavra Amigo!

Amigo é um sorriso

De boca em boca,

Um olhar bem limpo

Uma casa, mesmo modesta, que se oferece,

Um coração a pulsar

Na nossa mão!

Amigo (recordam-se, vocês aí,

Escrupulosos detritos?)

Amigo é o contrário de inimigo!

Amigo é o erro corrigido,

Não o erro perseguido, explorado.

É a verdade partilhada, praticada.

Amigo é a solidão derrotada!

Amigo é uma grande tarefa,

Um trabalho sem fim,

Um espaço útil, um tempo fértil,

Amigo vai ser, é já uma grande festa!



Alexandre O'Neill

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É esta festa que partilho com a Sophiamar de A Ver o Mar... e a Maria de O Cheiro da Ilha . Com elas encontro afinidades e partilho gostos e emoções. E entre nós germinou a Amizade, bem real.

O mesmo acontece com o Amaral de Laramablog , o Daniel de Humores , a Helena de Linha de Cabotagem , a Kalinka de Kalinka , a Lena de Cabana de Palavras , a Maria M. de Blog com palavras ao fundo , a O'Sanji de Plan(o)alto , o Platero de Click Portugal , o Poeta de Poeta eu sou e o Spectrum de PostScriptum .

Refiro, apenas, aqueles que há mais tempo me acompanham, e não esqueço alguns que hoje se encontram afastados da blogosfera, mas que persistem na minha memória, como o Albino de Poliedro e a minha amiga Heloísa de que, infelizmente, perdi o link do blog.

É com todos vós que a solidão é derrotada.

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terça-feira, janeiro 15, 2008

Para uma menina com uma flor



Porque você é uma menina com uma flor e tem uma voz que não sai, eu lhe prometo amor eterno, salvo se você bater pino, o que, aliás, você não vai nunca porque você acorda tarde, tem um ar recuado e gosta de brigadeiro: quero dizer, o doce feito com leite condensado.


(...)

E já que você é uma menina com uma flor e eu estou vendo você subir agora - tão purinha entre as marias -sem-vergonha - a ladeira que traz ao nosso chalé, aqui nestas montanhas recortadas pela mão presciente de Guignard; e o meu coração , como quando você me disse que me amava, põe-se a bater cada vez mais depressa. E porque eu me levanto para recolher você no meu abraço, e o mato à nossa volta se faz murmuroso e se enche de vaga-lumes enquanto a noite desce com seus segredos, suas mortes, seus espantos - eu sei , ah, eu sei que o meu amor por você é feito de todos os amores que eu já tive, e voce é a filha dileta de todas as mulheres que eu amei ; e que todas as mulheres que eu amei, como tristes estátuas ao longo da áleia de um jardim noturno, foram passando você de mão em mão, de mão em mão até mim, cuspindo no seu rosto e enfeitando a sua fronte de grinaldas, foram passando você até mim, entre cantos , súplicas e vociferações - porque você é linda , porque você é meiga e sobretudo porque você é uma menina com uma flor.



Vinicius de Moraes



... e porque sei a ternura com que escolheste este livro para mim, e o trouxeste atravessando o oceano, obrigada, Jorge.

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sexta-feira, janeiro 11, 2008

Mektoub



a luminosidade é uma placa de zinco suspensa
do céu do deserto

em redor
a imensidão das areias vibra contra o caos
de pedra e de eufórbios que se multiplicam
a perder de vista

o bafo inquieto dos cavalos acende
a pólvora das festas inesperadas

uma coruja morre
no cimo açucarado da tamareira

caminhas
sitiada pelo canto agudo do muezzin
chamando à oração

mektoub

sítios onde a vida cessou e tudo está escrito
há séculos - onde o coração dos homens
é uma rosa nómada e calcária

no limite da escassa água e desta terra seca
mal abençoada - caminhas
na plana noite das ardósias
nas jeiras de súplicas e recolhimento onde
talvez se esconda
o contorno quase terno do rosto de deus



Al Berto
(in O Medo)


Celebrando o nascimento do poeta a 11 de Janeiro de 1948. Celebrando a sua poesia que permanece viva.
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Pesquisei o significado da palavra "Mektoub". Obtive "Destino".
Gostaria de saber se o resultado da pesquisa é correcto. Há dias em que o significado das palavras é importante.
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quarta-feira, janeiro 09, 2008

Idades




No início,
eu queria um instante.
A flor.

Depois,
nem a eternidade me bastava.
E desejava a vertigem
do incêndio partilhado.
O fruto.

Agora,
quero apenas
o que havia antes de haver vida.
A semente.



Mia Couto
(in idades, cidades, divindades)




Poema que o Natal me trouxe. Obrigada, Alex.


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quinta-feira, janeiro 03, 2008

O boneco de neve




Há que ter um espírito de Inverno
Para olhar a geada e os ramos
Dos pinheiros encrostados de neve;

E ter tido frio muito tempo
Para ver os zimbros encrespados com gelo,
Os abetos eriçados ao brilho distante

Do sol de Janeiro; e não pensar
Em qualquer desgraça no som do vento,
No som de algumas folhas,

Que é o som da terra
Cheia do mesmo vento
Que sopra no mesmo lugar deserto

Para o ouvinte, que ouve na neve,
E, ele mesmo nada, não vê
Nada que lá não está e sim o nada que vê.



Wallace Stevens
(in Ficção Suprema, tradução de Luísa Maria Lucas Queiroz de Campos)


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