sexta-feira, fevereiro 27, 2009

Natureza viva


Foto de Paolo Giudici
(www.onexposure.net)


Gosto de sentir a natureza e fingir
que não lhe pertenço.
A mão gigante do vento vai sacudindo o carro

contra o mar
com grandes chapadas brancas.

Não é o mundo que tenho na cabeça
as gotas de água que embaciam o vidro
e o véu da chuva o da noiva submissa.

As palavras não querem ser irmãs das ondas
e o meu silêncio não é filho
desta tempestade.

Mas como é belo
que tudo viva na luta de viver.
A fúria da maré no espelho do meu rosto
como um poema de Pedro Homem de Mello.

O som mais natural
dá-me a nitidez dos choros suicidas
e transporta no tempo
esse luxo dos homens que se chama
esperança.

No céu baila e divaga mais uma gaivota.
No chão perto do mar
outro baile circunda o coração.
Mas nunca saberei como se dança.



Armando Silva Carvalho
(in Lisboas)


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segunda-feira, fevereiro 23, 2009

Sem que soubesses


Foto de Mamz Hu
(www.onexposure.net)


Eu cantei este amor sem que soubesses.
Falei de ti com as palavras mais limpas,
viajei (sem que soubesses) no teu interior.
Fiz-me degrau para pisares, mesa para comeres,
tropeçavas em mim e eu era uma sombra
ali posta para não reparares em mim.

Andei pelas praças anunciando o teu nome,
chamei-te barco, flor, incêndio, madrugada.
Em tudo o mais usei de parcimónia
a que me forçava aquele ardor exclusivo.

Hoje os versos são para entenderes.
Reparto contigo um óleo inesgotável
que trouxe escondido aceso na minha lâmpada
brilhando ( sem que soubesses) por tudo o que fazias.



Fernando Assis Pacheco
(in Cuidar dos vivos)


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quinta-feira, fevereiro 19, 2009

Melodia


Foto de Ana Maria Russo
(www.1000imagens.com)


Este é o orvalho dos teus olhos.
Esta é a rosa dos teus vales.
O silêncio dos olhos está no silêncio das rosas.
Tu estás no meio,
entre a dor e o espanto da treva.
Arrancas-te ao mundo e és a perfumada
distância do mundo.
Chego sem saber, à beira dos séculos.
Despenho-me nos teus lagos quando para ti
canta o cisne mais triste.
O pólen esvoaça no meu peito, junto às tuas
nuvens.
Esta é a canção do teu amor.
Esta é a voz onde vive a tua canção.
As tuas lágrimas passam pela minha terra
a caminho do mar.



José Agostinho Baptista
(in Além-Mar)


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segunda-feira, fevereiro 16, 2009

Mar, mar e mar


Foto de Alex



Tu perguntas, e eu não sei,
eu também não sei o que é o mar.

É talvez uma lágrima caída dos meus olhos
ao reler uma carta, quando é de noite.
Os teus dentes, talvez os teus dentes,
miúdos, brancos dentes, sejam o mar,
um mar pequeno e frágil,
afável, diáfano,
no entanto sem música.

É evidente que minha mãe me chama
quando uma onda e outra onda e outra
desfaz o seu corpo contra o meu corpo.
Então o mar é carícia,
luz molhada onde desperta
meu coração recente.

Às vezes o mar é uma figura branca
cintilando entre os rochedos.
Não sei se fita a água
ou se procura
um beijo entre conchas transparentes.

Não, o mar não é nardo nem açucena.
É um adolescente morto
de lábios abertos aos lábios de espuma.
É sangue,
sangue onde a luz se esconde
para amar outra luz sobre as areias.

Um pedaço de lua insiste,
insiste e sobe lenta arrastando a noite.
Os cabelos de minha mãe desprendem-se,
espalham-se na água,
alisados por uma brisa
que nasce exactamente no meu coração.
O mar volta a ser pequeno e meu,
anémona perfeita, abrindo nos meus dedos.

Eu também não sei o que é o mar.
Aguardo a madrugada, impaciente,
os pés descalços na areia.



Eugénio de Andrade
(in As palavras interditas)



Para ti, Alex, escolhi este poema para ilustrar a tua foto, memória de uma viagem que o tempo não apaga.

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quinta-feira, fevereiro 12, 2009

Vem comigo


Foto de Ralf Stelander
(www.onexposure.net)



vem comigo
ver as pirâmides fantásticas do vento
no interior luminoso da terra encontrarás
o segredo de quartzo para desvendares o tempo
onde contemplamos a fulva doçura das cerejas

iremos para onde os restos de vida não acordem
a dor da imensa árvore a sombra
dos cabelos carregados de pólenes e de astros
crescemos lado a lado com o dragão
o súbito relâmpago dos frutos amadurecendo
iluminará por um instante as águas do jardim
e o alecrim perfumará os noctívagos passos
há muito prisioneiros no barro
onde o rosto se transforma e morre
e já não nos pertence

vem comigo
praticar essa arte imemorial de quem espera
não se sabe o quê junto à janela
encolho-me
como se fechasse uma gaveta para sempre
caminhasse onde caiu um lenço
mas levanto os olhos
quando o verão entra pelo quarto e devassa
esta humilde existência de papel

vem comigo
as palavras nada podem revelar
esqueci-as quase todas onde vislumbro um fogo
pegando fogo ao corpo mais próximo do meu



Al Berto
(in O Medo)

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domingo, fevereiro 08, 2009

Por um rosto chego ao teu rosto



Foto de Carolien van den Brink
(www.onexposure.net)


Por um rosto chego ao teu rosto,
noutro corpo sei o teu corpo.
Num autocarro, num café me pergunto
porque não falam o que vai
no seu silêncio aqueles cujo olhar
me fala da solidão.
Esqueço-me de mim. Tão quieto
pensando na sua pouca coragem, a minha
sempre adiada. Por um rosto
chegaria ao teu rosto, mesmo de um convite
ousado fugiria, esta mão conhece-te
e desenha no ar o hábito
por que andou antes de saíres
do espaço à sua volta. Estás longe,
só assim podes pedir algumas horas
aos meus dias. Sem fixar a voz
a tua voz é uma corda, a minha
um fio a partir-se.


Helder Moura Pereira
(in De Novo as Sombras e as Calmas)


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Faz hoje 4 anos que a Encosta abriu esta janela sobre o Mar. Será possível ter passado já tanto tempo?
Muito obrigada a todos que me têm ajudado a mantê-la aberta. É a vossa presença e a forma como recebem as minhas escolhas que me dão estímulo para continuar.


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quarta-feira, fevereiro 04, 2009

Magnificat



Foto de Matjaz
(www.onexposure.net)



Quando é que passará esta noite interna, o universo,
E eu, a minha alma, terei o meu dia?
Quando é que despertarei de estar acordado?
Não sei. O sol brilha alto,
Impossível de fitar.
As estrelas pestanejam frio,
Impossíveis de contar.
O coração pulsa alheio,
Impossível de escutar.
Quando é que passará este drama sem teatro,
Ou este teatro sem drama,
E recolherei a casa?
Onde? Como? Quando?
Gato que me fitas com olhos de vida,
quem tens lá no fundo?
É esse! É esse!
Esse mandará como Josué parar o sol e eu acordarei;
E então será dia.
Sorri, dormindo, minha alma!
Sorri, minha alma, será dia!



Álvaro de Campos
(in Obras Completas II)


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