terça-feira, março 31, 2009

Dia após dia


Foto de Dulce B. , encontrada em Olhares .


Dia após dia, a glória da primavera rivaliza com a glória do sol.
As estradas que serpenteiam até à cidade na colina cheiram a flores de amendoeira.
Quanto tempo até que os fios do coração, livre de cuidados,
Flutuem, como a alfazema, por longa distância.



Li Shang-Yin
(in Chuva na Primavera e Outros Poemas)
Tradução de José Alberto Oliveira


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sexta-feira, março 27, 2009

Atrium - (excerto)


Foto de Silenciosamente
(www.olhares.com)



(...)

________ hoje abri novamente a janela onde sempre me debruço e escrevi : aqui está a imobilidade aquática do meu país, o oceânico abismo com cheiro a cidades por sonhar. invade-me a vontade de permanecer aqui, para sempre, à janela, ou partir com as marés e jamais voltar ...
________ releio o que escrevi há doze anos, neste mesmo lugar : as canetas secaram, os lápis ficaram esquecidos não sei onde. as borrachas já não apagam a melancolia das palavras. a escrita que inventámos evadiu-se do corpo, o vazio devora-nos. onde estivémos este tempo todo? voltaremos a encontrar e a tocar nossos corpos?

________ não estás aqui mas vejo-te nítido quando uma pétala de bruma envolve a casa e adormece o desejo. um astro ininteligível e de órbita difícil guia-me, ilumina-te. pelas frestas de um espaço oco prescruto o eco do meu corpo, o silente medo de continuar vivo.
________ sento-me no cimo do meu próprio lixo e sorrio. espero que cheguem outros dias com algum sonho, ou destino, mais feliz.



Al Berto
(in À Procura do Vento Num Jardim D'Agosto)


Ainda em cena, até 5 de Abril, no Teatro Nacional D. Maria II, em Lisboa, A Noite , um espectáculo do Teatro O Bando, com base na poesia de Al Berto.

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segunda-feira, março 23, 2009

A casa onde às vezes regresso é tão distante


Foto de Dave Nitsche
(www.onexposure.net)



A casa onde às vezes regresso é tão distante
da que deixei pela manhã
no mundo
a água tomou o lugar de tudo
reúno baldes, estes vasos guardados
mas chove sem parar há muitos anos

Durmo no mar, durmo ao lado de meu pai
uma viagem se deu
entre as mãos e o furor
uma viagem se deu: a noite abate-se fechada
sobre o corpo

Tivesse ainda tempo e entregava-te
o coração




José Tolentino Mendonça
(in A que distância deixaste o coração )


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quarta-feira, março 18, 2009

Nomeei-te no meio dos meus sonhos




Nomeei-te no meio dos meus sonhos
chamei por ti na minha solidão
troquei o céu azul pelos teus olhos
e o meu sólido chão pelo teu amor.



Ruy Belo

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sábado, março 14, 2009

Arrojos




Se a minha amada um longo olhar me desse
Dos seus olhos que ferem como espadas,
Eu domaria o mar que se enfurece
E escalaria as nuvens rendilhadas.

Se ela deixasse, extático e suspenso
Tomar-lhe as mãos mignonnes e aquecê-las,
Eu com um sopro enorme, um sopro imenso
Apagaria o nome das estrelas.

Se aquela que amo mais que a luz do dia,
Me aniquilasse os males taciturnos
O brilho dos meus olhos venceria
O clarão dos relâmpagos nocturnos.

Se ela quisesse amar, no azul do espaço,
Casando as suas penas com as minhas,
Eu desfaria o Sol como desfaço
As bolas de sabão das criancinhas.

Se a Laura dos meus loucos desvarios
Fosse menos soberba e menos fria,
Eu pararia o curso aos grandes rios
E a terra sob os pés abalaria.

Se aquela por quem já não tenho risos
Me concedesse apenas dois abraços,
Eu subiria aos róseos paraísos
E a Lua afogaria nos meus braços.

Se ela ouvisse os meus cantos moribundos
E os lamentos das cítaras estranhas
Eu ergueria os vales mais profundos
E abalaria as sólidas montanhas.

E se aquela visão de fantasia
Me estreitasse ao peito alvo de arminho,
Eu nunca, nunca mais me sentaria
Às mesas espelhentas do Martinho.


Cesário Verde
(in O Livro de Cesário Verde)


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Segundo o dizer de Fernando Pessoa, que muitas vezes ocupou a mesa do Martinho da Arcada representada na foto, Cesário Verde foi um mestre que "ensinou a observar em verso".


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terça-feira, março 10, 2009

Amo como o amor ama


O chapéu de Fernando Pessoa ( Costa Pinheiro)



Amo como o amor ama.
Não sei razão pra amar-te mais que amar-te.
Que queres que te diga mais que te amo,
Se o que quero dizer-te é que te amo?

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Quando te falo , dói-me que respondas
Ao que te digo e não ao meu amor.

....................................

Ah! não perguntes nada; antes me fala
De tal maneira, que, se eu fôra surda,
Te ouvisse todo com o coração.

Se te vejo não sei quem sou : eu amo.
Se me faltas (...)
... Mas tu fazes, amor, por me faltares
Mesmo estando comigo, pois perguntas -
Quando é amar que deves. Se não amas,
Mostra-te indiferente, ou não me queiras,

Mas tu és como nunca ninguém foi,
Pois procuras o amor pra não amar,
E, se me buscas, é como se eu só fosse
Alguém pra te falar de quem tu amas.

......................................

Quando te vi amei-te já muito antes.
Tornei a achar-te quando te encontrei.
Nasci pra ti antes de haver o mundo.
Não há cousa feliz ou hora alegre
Que eu tenha tido pela vida fora,
Que o não fosse porque te previa,
Porque dormias nela tu futuro.

......................................
......................................
......................................


Fernando Pessoa

(in "Obra Poética", Primeiro Fausto)


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sexta-feira, março 06, 2009

Luz


L'issue lumineuse (Vieira da Silva)


Talvez que noutro mundo, noutro livro,
tu não tenhas morrido
e talvez nesse livro não escrito
nem tu nem eu tenhamos existido

e tenham sido outros dois aqueles
que a morte separou e um deles
escreva agora isto como se
acordasse de um sonho que

um outro sonhasse (talvez eu),
e talvez então tu, eu, esta impressão
de estranhidão, de que tudo perdeu
de súbito existência e dimensão,

e peso, e se ausentou,
seja um sonho suspenso que sonhou
alguém que despertou e paira agora
como uma luz algures do lado de fora.



Manuel António Pina
(in Os Livros)


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terça-feira, março 03, 2009

Por amor



Só ficará de ti o que fizeste
por amor.
O resto não valeu:
foi apenas poeira que se ergueu
em teu redor
e o vento varreu.

Só ficará de ti o que escreveste
com paixão.
O resto não contou:
foi tão-só uma sombra que passou,
pura ilusão,
e nem rasto deixou.



Torquato da Luz



Parabéns, Torquato, pelo lançamento de mais um livro escrito com paixão. A Encosta do Mar segue o rasto que a poesia vai deixando e que o vento não varrerá.

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