sábado, novembro 28, 2009

Então sento-me à tua mesa

Apparition of the face of Aphrodite (Salvador Dalí)


Então sento-me à tua mesa. Porque é de ti
que me vem o fogo.
Não há gesto ou verdade onde não dormissem
tua sombra e loucura,
não há vindima ou água
em que não estivesses pousando o silêncio criador.
Digo : olha, é o mar e a ilha dos mitos
originais.
Tu dás-me a tua mesa, descerras na vastidão da terra
a carne transcendente. E em ti
principiam o mar e o mundo.

Minha memória perde em sua espuma
o sinal e a vinha.
Plantas, bichos, águas cresceram como religião
sobre a vida - e eu nisso demorei
meu frágil instante. Porém,
teu sinal de fogo e leite repõe a força
maternal, e tudo circula entre teu sopro
e teu amor. As coisas nascem de ti
como as luas nascem dos campos fecundos,
os instantes começam da tua oferenda
como as guitarras tiram seu início da música nocturna.




Herberto Helder
(excerto do poema O amor em visita)

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domingo, novembro 22, 2009

Vai alta no céu a lua da primavera

Foto de Kregon aqui


Vai alta no céu a lua da Primavera.
Penso em ti e dentro de mim estou completo.

Corre pelos vagos campos até mim uma brisa ligeira.
Penso em ti, murmuro o teu nome e não sou eu: sou feliz.

Amanhã virás, andarás comigo a colher flores pelos campos,
E eu andarei contigo pelos campos a ver-te colher flores.
Eu já te vejo amanhã a colher flores comigo pelos campos,
Mas quando vieres amanhã e andares comigo a colher flores,
Isso será uma alegria e uma verdade para mim.




Alberto Caeiro
(in O Pastor Amoroso)
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segunda-feira, novembro 16, 2009

Viagem através da Luz

Foto de Viper aqui


Transitamos através da luz
somos a pura contemplação da luz
a linguagem o cinzel dum barco
em perpétuas lúdicas viagens
ao interior dum mapa

e os nossos olhos acendem as manhãs
ébrios pela plenitude das manhãs
na linguagem alada dos sentidos e das seivas,
o desígnio que se lê pelo seio dos rios
as ervas que ecoam pelos caminhos claros.

São a nossa mais delicada ansiedade
mas também a nossa paixão as suas divagações
a fantasia e o delírio descrito nas viagens
ao fim dum mundo imaginário
perpétuo de idas e regressos
no oculto obscurecido dos olhos
que ignoram o modo sereno da luz e do pó.




(in Viagem através da Luz)

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terça-feira, novembro 10, 2009

O sonho foge das pálpebras



Foto de Ursula I Abresch aqui




O sonho foge das pálpebras
A quarta vela exausta
Dentro adormece o mar.

Os amuletos, tuas partes visíveis
Começam dentro do ar
O chamamento da deusa, metamorfose
De uma rapariga em mil e uma portas
Que o céu tilintado abre ao javali

Agora só nos resta para escaparmos
À noite o claro susto das constelações
A falésia do amor
Onde nasce e tomba
E ressuscita
O séquito das mãos
A garça e o falcão.





Gil de Carvalho
( in Viagens)


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quarta-feira, novembro 04, 2009

O mar é a tua voz





Ouço neste dia o som líquido das tuas mãos
o secreto coração escuro da memória
a claridade quando invade a sua rosa
as asas abertas para a imensidão
procuro o luminoso mar eterno do olhar
o mar canta o sal na voz da tua pele
a solidão das lágrimas que amordaçam o vento
os teus olhos fecham-se com o meu sono
deixa-me navegar no teu nome e dormir





Pedro Crisóstomo
(in O Mar é a Tua Voz)




O mar da Ericeira a inspirar o poema e a foto. Som líquido a derramar-se na solidão das palavras. A Encosta do Mar amordaçando as memórias.

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