sexta-feira, fevereiro 26, 2010

O navio de espelhos

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O navio de espelhos
não navega cavalga

Seu mar é a floresta
que lhe serve de nível

Ao crepúsculo espelha
sol e lua nos flancos

Por isso o tempo gosta
de deitar-se com ele

Os armadores não amam
a sua rota clara

(Vista do movimento
dir-se-ia que pára)

Quando chega à cidade
nenhum cais o abriga

O seu porão não traz nada
nada leva à partida

Vozes e ar pesado
é tudo o que transporta

(E no mastro espelhado
uma espécie de porta)

Seus dez mil capitães
têm o mesmo rosto

A mesma cinta escura
o mesmo grau e posto

Quando um se revolta
há dez mil insurrectos

(Como os olhos da mosca
reflectem os objectos)

E quando um deles ala
o corpo sobre os mastros
e escruta o mar do fundo

Toda a nave cavalga
(como no espaço os astros)

Do princípio do mundo
até ao fim do mundo



Poema e voz de Mário Cesariny
Música de Rodrigo Leão (cd - Os Poetas)

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segunda-feira, fevereiro 22, 2010

A magnólia

Foto de Joan Kocak aqui



A exaltação do mínimo
e o magnífico relâmpago
do acontecimento mestre
restituem-me a forma
o meu esplendor

Um diminuto berço me recolhe
onde a palavra se elide
na matéria - na metáfora -
necessária e leve, a cada um
onde se ecoa e resvala -

A magnólia,
o som que se desenvolve nela
quando pronunciada,
é um exaltado aroma
perdida na tempestade,

um mínimo ente magnífico
desfolhando relâmpagos
sobre mim



Luiza Neto Jorge
(in O seu a seu tempo)

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quarta-feira, fevereiro 17, 2010

De amor ardem os bosques



Há lembranças que matam
há bosques onde os amados vivem para sempre

há um cutelo de água nas fontes
quando as palavras voam para muito longe

há a noite
e os cães que dormem em cordas de sono
em vogais de vento e abandono

há barcos que deslizam no horizonte
muito lentamente
e as estrelas descem por dentro dos mastros
na noite

há uma orquídea azul que se suicida
onde começa o teu nome




Do novo livro de Maria Azenha, que se encontra disponível apenas para pedidos através do endereço indicado no blog.
A ler, já !


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sexta-feira, fevereiro 12, 2010

Poesia e música


Teatro S. Luís
Ciclo Poesia e Música
Sábados às 17.30
Jardim de Inverno



As palavras e a música preenchem cinco tardes. São recordados cinco poetas através da sua cumplicidade com os actores que os lêem.

Sábado passado, dia 6 de Fevereiro, foi dedicado à poesia de Alberto de Lacerda, na voz de Jorge Silva Melo, e à música de Mozart, interpretada ao piano por João Aboim.
Amanhã será a vez de Luiza Neto Jorge, dita por Luís Miguel Sintra, e com música de Jorge Peixinho


REGRESSO


Não vim à procura de nada
Nem de saudades que não tenho
Nem de carga do tempo perdido
Nem de conflitos sobrenaturais
Do tempo e do espaço

Amei desde criança
Certas coisas que não choro
Fui a pureza deslumbrada que não volta jamais
O vidro sem ranhura que o sol atravessa
A pureza
Que me deixou feridas imortais

Vim para ver
Para ver de novo
Para contemplar sem perguntas
Não vim à procura de nada
Não me perguntem por nada
Um rio não se interroga
O vento não se arrepende



Alberto de Lacerda
(in Oferenda)

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segunda-feira, fevereiro 08, 2010

Encosta do Mar



...

O meu país são todos os amigos
que conquisto e que perco a cada instante
Os meus amigos são os mais recentes
os dos demais países os que mal conheço e
tenho de abandonar porque me vou embora
pois eu nunca estou bem onde estou
nem mesmo estou sequer onde estou
...


Ruy Belo
(fragmento de Peregrino e hóspede sobre a terra , in Todos os Poemas)



Faz hoje cinco anos que a Encosta abriu uma janela sobre o mar das palavras.
A todos os amigos que me têm acompanhado , obrigada pelo estímulo que me dão para continuar a partilhar as minhas escolhas.


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quarta-feira, fevereiro 03, 2010

Espera

Foto de Jure Kravanja aqui


Horas, horas sem fim,
pesadas, fundas,
esperarei por ti
até que todas as coisas sejam mudas.

Até que uma pedra irrompa
e floresça.
Até que um pássaro me saia da garganta
e no silêncio desapareça.


Eugénio de Andrade
( in Corpo de amor )


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