quarta-feira, outubro 13, 2010

Deus nos lírios


sinto deus, todas as noites, nos lírios
de Monet. olham por mim,
por esta sombra incerta que morre
aos poucos comigo, cobrem
de seiva viva a escuridão da casa
e afastam os demónios
que se escondem nas frestas do sono.

pela manhã, junto as pétalas tenras
caídas no lençol, e rezo baixinho,
com os pardais, um verso branco.



Renata Correia Botelho
(in Telhados de Vidro/12)



... Poema que a poeta dedicou à mãe.
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segunda-feira, outubro 04, 2010

Poema à mãe

Maternidade (Almada Negreiros)
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No mais fundo de ti,
Eu sei que te traí, mãe.
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Tudo porque já não sou
O menino adormecido
No fundo dos teus olhos.
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Tudo porque ignoras
Que há leitos onde o frio não se demora
E noites rumorosas de águas matinais.
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Por isso, às vezes, as palavras que te digo
São duras, mãe,
E o nosso amor é infeliz.
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Tudo porque perdi as rosas brancas
Que apertava junto ao coração
No retrato da moldura.
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Se soubesses como ainda amo as rosas,
Talvez não enchesses as horas de pesadelos.
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Mas tu esqueceste muita coisa;
Esqueceste que as minhas pernas cresceram,
Que todo o meu corpo cresceu,
E até o meu coração
Ficou enorme, mãe.
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Olha - queres ouvir-me?-
Às vezes ainda sou o menino
Que adormeceu nos teus olhos;
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Ainda aperto contra o coração
Rosas tão brancas
Como as que tens na moldura;
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Ainda ouço a tua voz :
"Era uma vez uma princesa
no meio de um laranjal ..."
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Mas - tu sabes - a noite é enorme
e todo o meu corpo cresceu .
Eu saí da moldura
Dei às aves os meus olhos a beber.
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Não me esqueci de nada, mãe.
Guardo a tua voz dentro de mim.
E deixo as rosas.
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Boa noite. Eu vou com as aves.
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Eugénio de Andrade
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... À memória da minha Mãe.