sábado, março 24, 2012

R. 1992

Marc Chagall

Quando os anos passarem
sobre esse teu desgosto
vais ver que te curaste
não de vez mas um pouco

pois o que a gente busca
nas dobras do amor
é a cura para a morte
que não tem consolo

e por falar em f´ridas
até as que mais doem
acabam por fechar
só ela vence o corpo



Fernando Assis Pacheco
(in Respiração Assistida)

quinta-feira, março 15, 2012

O amor aumenta

Salvador Dali



o amor aumenta com o amarelecimento do linho
maior quietude rodeia agora a casa lunar
soçobram do fundo dos espelhos submersos os instrumentos
de muitos e delicados trabalhos
repousam sobre a erva para sempre

só o desejo dalguma eternidade despertaria o terno arado
mas a vida tropeça nos húmidos grãos de terra
as selvagens flores afligir-te-ão o olhar
por isso inventaremos o necessário ciclo do outono

a noite dilata a viagem
pressentimos a nervosa luta dos corpos contra a velhice
mas nada há a fazer
resta-nos descer com as raízes do castanheiro
até onde se ramificam as primeiras águas e se refaz o desejo

as bocas erguem-se
procuram um rápido beijo no éter da casa



Al Berto
(in Trabalhos do Olhar)

sexta-feira, março 09, 2012

A carta da paixão

Foto de Diego Baroni


Esta mão que escreve a ardente melancolia
da idade
é a mesma que se move entre as nascentes da cabeça,
que à imagem do mundo aberta de têmpora
a têmpora
ateia a sumptuosidade do coração. A demência lavra
a sua queimadura desde os recessos negros
onde
se formam
as estações até ao cimo,
nas sedas que se escoam com a largura
fluvial
da luz e a espuma, ou da noite e as nebulosas
e o silêncio todo branco.
...
É de ouro a paisagem que nasce : eu torço-a
entre os braços. E há roupas vivas, o imóvel
relâmpago das frutas. O incêndio atrás das noites corta
pelo meio
o abraço da nossa morte. Os fulcros das caras
um pouco loucas
engolfadas, entre as mãos sumptuosas.
A doçura mata.
A luz salta às golfadas.
A terra é alta.
Tu és o nó de sangue que me sufoca.
Dormes na minha insónia como o aroma entre os tendões
da madeira fria. És uma faca cravada na minha
vida secreta. E como estrelas
duplas,
consanguíneas, luzimos de um para o outro
nas trevas.

Herberto Helder
(in Antologia Pessoal da Poesia Portuguesa, por Eugénio de Andrade)


...

Regressando, agradeço a quem esperou por mim !

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