Quando eu nasci na grande casa à beira-mar,
era meio-dia e o Sol brilhava sobre o Índico.
Gaivotas pairavam, brancas, doidas de azul.
Os barcos dos pescadores indianos não tinham regressado ainda
arrastando as redes pejadas.
Na ponte, os gritos dos negros dos botes
chamando as mamanas amolecidas de calor,
de trouxas à cabeça e garotos ranhosos às costas
soavam com um ar longínquo,
longínquo e suspenso na neblina do silêncio.
E nos degraus escaldantes,
mendigo Mufasini dormitava, rodeado de moscas.
Quando eu nasci...
- Eu sei que o ar estava calmo, repousado (disseram-me)
e o Sol brilhava sobre o mar.
No meio desta calma fui lançada ao mundo,
já com meu estigma.
E chorei e gritei - nem sei porquê.
Ah, mas pela vida fora
minhas lágrimas secaram ao lume da revolta.
E o Sol nunca mais me brilhou como nos dias primeiros
da minha existência
embora o cenário brilhante e marítimo da minha infância,
constantemente calmo como um pântano,
tenha sido quem guiou meus passos adolescentes,
- meu estigma também.
...............
Por isso eu CREIO que um dia
o Sol voltará a brilhar , calmo, sobre o Índico.
Gaivotas pairarão, brancas, doidas de azul
e os pescadores voltarão, cantando,
navegando sobre a praia ténue.
E este veneno de lua que a dor me injectou nas veias
em noite de tambor e batuque
deixará para sempre de me inquietar.
Um dia,
o Sol iluminará a vida.
E será como uma nova infância raiando para todos...
Noémia de Sousa
(in Sangue Negro)
Carolina Noémia Abranches de Sousa nasceu na Catembe, Maputo, a 20 de Setembro de 1926. Foi jornalista da agencia LUSA em Portugal, país onde faleceu a 4 de Dezembro de 2002. Uma das vozes fundadoras da poesia de raiz marcadamente moçambicana e um dos nomes referenciais da poesia africana.
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