terça-feira, outubro 30, 2007

até onde



Chamas: eu ouço, aqui no meu lugar
silencioso porque nada freme
na secura indelével
da solidão. De novo se chamares
gaudinarei à espera do pedido
para que siga o teu apelo em mim;
então hei-de envolver este destino
que levará a ti.
E só então me voltarei. Atenta:
é muito pouco ouvir
palavras a fluírem
sem que saiba porquê o chamamento.
Se me queres entrega-me o segredo
da súbita vontade
e roga-me que vá
até onde encontrar-te. Com enlevo.



António Salvado
(in Coisas Marinhas e Terrestres)


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domingo, outubro 28, 2007

Ver-te




Ver-te é como ter à minha frente todo o tempo
é tudo serem para mim estradas largas
estradas onde passa o sol poente
é o tempo parar e eu próprio duvidar mas sem pensar
se o tempo existe se existiu alguma vez
e nem mesmo meço a devastação do meu passado.
Quando te vejo e embora exista o vento
nenhuma folha nas múltiplas àrvores se move
ver-te é logo todas as coisas começarem é
tudo ser desde sempre anterior a tudo.
Ver-te é sem tu me veres eu sentir-me visto
sentir no meu andar alguma segurança mínima
caminhar pelo ar a meio metro da terra
e tudo flutuar e ser ainda mais aéreo do que o ar
ver-te é nem mesmo pensar que deixarei de ver-te


...



Ruy Belo

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quarta-feira, outubro 24, 2007

Tofinho







De todos os cantos do mundo
Amo com um amor mais forte e mais profundo
Aquela praia extasiada e nua,
Onde me uni ao mar, ao vento e à lua.



Sophia de Mello Breyner Andresen


Retomo hoje os poetas do meu país.
Das margens do Índico guardo memórias e afectos. Estamos juntos, Alex, apesar de todas as distâncias.

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segunda-feira, outubro 22, 2007

Praia do Tofo







Quando eu nasci na grande casa à beira-mar,
era meio-dia e o Sol brilhava sobre o Índico.
Gaivotas pairavam, brancas, doidas de azul.
Os barcos dos pescadores indianos não tinham regressado ainda
arrastando as redes pejadas.
Na ponte, os gritos dos negros dos botes
chamando as mamanas amolecidas de calor,
de trouxas à cabeça e garotos ranhosos às costas
soavam com um ar longínquo,
longínquo e suspenso na neblina do silêncio.
E nos degraus escaldantes,
mendigo Mufasini dormitava, rodeado de moscas.

Quando eu nasci...
- Eu sei que o ar estava calmo, repousado (disseram-me)
e o Sol brilhava sobre o mar.
No meio desta calma fui lançada ao mundo,
já com meu estigma.
E chorei e gritei - nem sei porquê.
Ah, mas pela vida fora
minhas lágrimas secaram ao lume da revolta.

E o Sol nunca mais me brilhou como nos dias primeiros
da minha existência
embora o cenário brilhante e marítimo da minha infância,
constantemente calmo como um pântano,
tenha sido quem guiou meus passos adolescentes,
- meu estigma também.

...............

Por isso eu CREIO que um dia
o Sol voltará a brilhar , calmo, sobre o Índico.
Gaivotas pairarão, brancas, doidas de azul
e os pescadores voltarão, cantando,
navegando sobre a praia ténue.

E este veneno de lua que a dor me injectou nas veias
em noite de tambor e batuque
deixará para sempre de me inquietar.

Um dia,
o Sol iluminará a vida.
E será como uma nova infância raiando para todos...




Noémia de Sousa
(in Sangue Negro)



Carolina Noémia Abranches de Sousa nasceu na Catembe, Maputo, a 20 de Setembro de 1926. Foi jornalista da agencia LUSA em Portugal, país onde faleceu a 4 de Dezembro de 2002. Uma das vozes fundadoras da poesia de raiz marcadamente moçambicana e um dos nomes referenciais da poesia africana.

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quinta-feira, outubro 18, 2007

Subúrbio

Nos subúrbios de Inhambane...








Onde há casas menores com portas abertas
por sobre os espaços que a luz orna
entre as palmeiras
e vultos que amanhecem envoltos
em lençóis que a noite suja escorreu
a manhã pousa
nos pulsos das mulheres que se elevam com ela
e meninos negros alteiam-se
no flanco das mães
de olhos que a esperança já estria
Os comerciantes assoam-se
de varanda para varanda
retribuem devagar a amizade
Que os meninos trazem para fora
das tarefas diárias
as luas carcomidas no sítio das fogueiras
enfiadas murmuramente em seus colares.



Sebastião Alba
(in O Ritmo do Presságio)


Dinis Albano Carneiro Gonçalves nasceu em Braga em 1940, e aí faleceu em 2001. Viveu largos anos em Moçambique, onde publicou "O Ritmo do Presságio" e " A Noite Dividida".

sábado, outubro 13, 2007

Inhambane











Pai:
as maternas palavras de signos
vivem e revivem no meu sangue
e pacientes esperam ainda a época da colheita
enquanto soltas já não são as tuas sentimentais
sementes de emigrante português
espezinhadas no passo de marcha
das patrulhas de sovaco suando
as coronhas de pesadelo.

E na minha rude e grata
sinceridade filial não esqueço
meu antigo português puro
que me geraste no ventre de uma tombasana
eu mais um novo moçambicano
semiclaro para não ser igual a um branco qualquer
e seminegro para jamais renegar
um glóbulo que seja dos Zambezes do meu sangue.

.......

Oh Pai:
Juro que em mim ficaram laivos
do luso-arábico Aljezur da tua infância
mas amar por amor só amo
e somente posso e devo amar
esta minha bela e única nação do Mundo
onde minha mãe nasceu e me gerou
e contigo comungou a terra, meu Pai.
E onde ibéricas heranças de fados e broas
se africanizaram para a eternidade nas minhas veias
e teu sangue se moçambicanizou nos torrões
da sepultura de velho emigrante numa cama de hospital
colono tão pobre como desembarcaste em África
meu belo Pai ex-português.



José Craveirinha



Poeta maior de Moçambique, José João Craveirinha nasceu em Lourenço Marques ( Maputo) em 1922. Faleceu em Joanesburgo a 6 de Fevereiro de 2003. Escreveu dos mais belos e emblemáticos poemas que fundam a nacionalidade moçambicana.

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