segunda-feira, julho 28, 2008

búzio

Foto de Gaylen Morgan



sei que nunca viste o oceano,
que nunca olhaste a onda sobre a onda,
que nunca fizeste castelos para o mar ser forte,

mas sei que já viste o coração das coisas,
que já tocaste a ferida nos nossos braços,
que já escreveste para sempre o nome da terra.

por isso te digo que vou levar-te o mar
na concha das minhas mãos, azulíssimo,
para que nele descubras o meu nome
entre os seixos os búzios os rostos que já tive.



Vasco Gato
(in Um Mover de Mão)



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sexta-feira, julho 25, 2008

Peregrinação




e o poema toca o lugar dos olhos
no cântico de espuma das planícies



Pedro Sena-Lino
(in Constelação dos Antípodas)


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terça-feira, julho 22, 2008

existia uma rua de onde observava o mar



existia uma rua de onde observava o mar
as ondas desaparecidas já, apenas os rochedos
seus mexilhões e anémonas
a ligeira brisa

levantei-me de madrugada, tinha dez anos
balbuciei uns passos até à janela

hoje termino esse passeio pela sala
como se sentisse a água salgada
por entre os dedos

e novamente o mar, abraçando a felicidade
junto às areias.



(in A palavra no cimo das águas)

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sábado, julho 19, 2008

Por amor



Escrevo para não te sentir só.
Tenho medo da tua presença
e a escrita é a flor sintética das palavras
que afagam a doença do amor.
Finjo que não é para ti que escrevo
quando escrevo;
finjo que não é para ti que vivo,
quando vivo.
Finjo e escrevo e vivo por amor.



Ana Rita Calmeiro
(in Luminária)
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domingo, julho 13, 2008

O tempo, subitamente solto pelas ruas e pelos dias

Foto de David Silva aqui


O tempo, subitamente solto pelas ruas e pelos dias
como a onda de uma tempestade a arrastar o mundo,
mostra-me o quanto te amei antes de te conhecer.
eram os teus olhos , labirintos de água, terra, fogo, ar,
que eu amava quando imaginava que amava. era a tua
a tua voz que dizia as palavras da vida. era o teu rosto,
era a tua pele. antes de te conhecer existias nas árvores
e nos montes e nas nuvens que olhava ao fim da tarde,
muito longe de mim. dentro de mim, eras tu a claridade.




José Luís Peixoto
(in A Criança em Ruínas)

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quarta-feira, julho 09, 2008

Agora eu era linda outra vez

Foto de Sophie Thouvenin


Agora eu era linda outra vez
e tu existias e merecíamos
noite inteira um tão grande
amor
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agora tu eras como o tempo
despido dos dias, por fim
vulnerável e nu, e eu
era por ti adentro eternamente
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lentamente
como só lentamente
se deve morrer de amor


(in O Resto da minha Vida, seguido de A Remoção das Almas)

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sábado, julho 05, 2008

No mundo...

Foto de Gaylen Morgan


No mundo onde existem peixes e animais sólidos e altos como os grandes mamíferos, onde existem animais , como a borboleta, que parecem papel e não organismo, no mundo onde existem asas de cores diversas e cauda que se eleva ligeiramente para deixar espaço para os excrementos, no mundo onde o inesperado chega mais aos ricos que aos pobres, no mundo em que metade das coisas visíveis são cruéis e a outra metade é delicada por estratégia, no mundo tão vaidoso das suas cidades como da montanha que exibe na fotografia, no mundo soberbo e caridoso na forma como não mija demasiado sobre os que perderam, neste mundo, neste alegre mundo, como ocupará um poeta a sua manhã?


(Excerto de 1)


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