quinta-feira, novembro 30, 2006

Segredo


Noite suspensa (Carmo Pólvora)



Esta noite morri muitas vezes, à espera
de um sonho que viesse de repente
e às escuras dançasse com a minha alma
enquanto fosses tu a conduzir
o seu ritmo assombrado nas terras do corpo,
toda a espiral das horas que se erguessem
no poço dos sentidos. Quem és tu,
promessa imaginária que me ensina
a decifrar as intenções do vento
a música da chuva nas janelas
sob o frio de fevereiro? O amor
ofereceu-me o teu rosto absoluto,
projectou os teus olhos no meu céu
e segreda-me agora uma palavra:
o teu nome - essa última fala da última
estrela quase a morrer
pouco a pouco embebida no meu próprio sangue
e o meu sangue à procura do teu coração.


Fernando Pinto do Amaral

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sexta-feira, novembro 24, 2006

É do princípio das tardes


Rooms by the sea (Edward Hopper)


Evocando o sol, em tarde de muita chuva...



É do princípio das tardes
do sol das tardes
das janelas abertas
das cigarras
e é do som a entrar pelas janelas
da sua incidência nas cristaleiras
nas maçãs e nos jarrões,
é das iluminadas peças de bronze
do segundo plano das aguarelas
das mais à sombra fotografias da família
que eu saio
durante as horas paradas
para escrever poesia.



Daniel Maia-Pinto Rodrigues

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segunda-feira, novembro 20, 2006

Se partires, não me abraces


Foto de MiguelCosta


Se partires, não me abraces - a falésia que se encosta
uma vez ao ombro do mar quer ser barco para sempre
e sonha com viagens na pele salgada das ondas.

Quando me abraças, pulsa nas minhas veias a convulsão
das marés e uma canção desprende-se da espiral dos búzios;
mas o meu sorriso tem o tamanho do medo de te perder,
porque o ar que respiras junto de mim é como um vento
a corrigir a rota do navio. Se partires, não me abraces -

o teu perfume preso à minha roupa é um lento veneno
nos dias sem ninguém - longe de ti, o corpo não faz
senão enumerar as próprias feridas ( como a falésia conta
as embarcações perdidas nos gritos do mar) ; e o rosto
espia os espelhos à espera de que a dor desapareça.

Se me abraçares, não partas.



Maria do Rosário Pedreira

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sexta-feira, novembro 17, 2006

Sem outro intuito


Ripples ( Escher)


Atirávamos pedras
à água para o silêncio vir à tona.
O mundo, que os sentidos tonificam,
surgia-nos então todo enterrado
na nossa própria carne, envolto
por vezes em ferozes transparências
que as pedras acirravam
sem outro intuito além do de extraírem
às águas o silêncio que as unia.


Luís Miguel Nava

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domingo, novembro 12, 2006

Coisas de partir





Tento empurrar-te de cima do poema
para não o estragar na emoção de ti:
olhos semi-cerrados, em precauções de tempo
a sonhá-lo de longe, todo livre de ti.

Dele ausento os teus olhos, sorriso, boca, olhar:
tudo coisas de ti, mas coisas de partir...
E o meu alarme nasce. e se morreste aí,
no meio do chão sem texto que é ausente de ti?

E se já não respiras? Se eu não te vejo mais
por te querer empurrar, lírica de emoção?
E o meu pânico cresce: se tu não estiveres lá?
E se tu não estiveres onde o poema está?

Faço eroticamente respiração contigo:
primeiro um advérbio, depois um adjectivo,
depois um verso todo em emoção e juras.
E termino contigo em cima do poema,
presente indicativo, artigos às escuras.


Ana Luísa Amaral

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segunda-feira, novembro 06, 2006

Carta de amor


Liebesbrief . (MariolaBogacki )


Para te dizer tão-só que te queria.
Como se o tempo fosse um sentimento
bastava o teu sorriso de um outro dia
nesse instante em que fomos um momento.
Dizer amor como se fosse proibido
entre os meus braços enlaçar-te mais
como um livro devorado e nunca lido.
Será pecado, amor, amar-te demais?
Esperar como se fosse (des) esperar-te,
essa certeza de te ter antes de ter.
Ensaiar sozinho a nossa arte
de fazer amor antes de ser.
Adivinhar nos olhos que não vejo
a sede dessa boca que não canta
e deitar-me ao teu lado como o Tejo
aos pés dessa Lisboa que ele encanta.
Sentir falta de ti por tu não estares
talvez por não saber se tu existes
(percorrendo em silêncio esses altares
em sacrifícios pagãos de olhos tristes).
Ausência, sim. Amor visto por dentro,
certezas ao contrário, por estar só.
Pesadelo no meu sonho noite adentro
quando, ao meu lado, dorme o que não sou.
E, afinal, depois o que ficou
das noites perdidas à procura
de um resto de virtude que passou
por nós em co(r)pos de loucura?
Apenas mais um corpo que marcou
a esperança disfarçada de aventura...
(Da estupidez dos dias já estou farto,
das noites repetidas já cansado.
Mas, afinal, meu Deus, quando é que parto
para começar, enfim, este meu fado?)
No fim deste caminho de pecados
feito de desencontros e de encantos,
de palavras e de corpos já usados
onde ficamos sós, sempre, entre tantos...
Que fique como um dedo a nossa marca
e do que foi um beijo o nosso cheiro.
Tesouro que não somos. Fique a arca
que guarde o que vivemos por inteiro.



Fernando Tavares Rodrigues

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