segunda-feira, janeiro 30, 2006

Soneto do amor difícil


Foto de João Pedro aqui


A praia abandonada recomeça
logo que o mar se vai, a desejá-lo:
é como o nosso amor , somente embalo
enquanto não é mais que uma promessa...

Mas se na praia a onda se espedaça,
há logo a nostalgia duma flor
que ali devia estar para compor
a vaga em seu rumor de fim de raça.

Bruscos e doloridos, refulgimos
no silêncio da morte que nos tolhe,
como entre o mar e a praia um longo molhe

de súbito surgido à flor dos limos.
E deste amor difícil só nasceu
desencanto na curva do teu céu.



David Mourão - Ferreira

sexta-feira, janeiro 27, 2006

Actuação escrita





Pode-se escrever

Pode-se escrever sem ortografia
Pode-se escrever sem sintaxe
Pode-se escrever sem português
Pode-se escrever numa língua sem saber essa língua
Pode-se escrever sem saber escrever
Pode-se pegar na caneta sem haver escrita
Pode-se pegar na escrita sem haver caneta
Pode-se pegar na caneta sem haver caneta
Pode-se escrever sem caneta
Pode-se sem caneta escrever caneta
Pode-se sem escrever escrever plume
Pode-se escrever sem escrever
Pode-se escrever sem sabermos nada
Pode-se escrever nada sem sabermos
Pode-se escrever sabermos sem nada
Pode-se escrever nada
Pode-se escrever com nada
Pode-se escrever sem nada

Pode-se não escrever



Pedro Oom

terça-feira, janeiro 24, 2006

O amor é o amor


Foto de Maria Cristina Oliveira aqui



O amor é o amor - e depois?
Vamos ficar os dois
a imaginar, a imaginar?...

O meu peito contra o teu peito
cortando o mar, cortando o ar.
Num leito
há todo o espaço para amar!

Na nossa carne estamos
sem destino, sem medo, sem pudor,
e trocamos - somos um? somos dois? -
espírito e calor!

O amor é o amor - e depois?



Alexandre O'Neill

sábado, janeiro 21, 2006

Amo o teu túmido candor de astro


Foto de Francisco Botelho aqui



Amo o teu túmido candor de astro
a tua pura integridade delicada
a tua permanente adolescência de segredo
a tua fragilidade sempre altiva

Por ti eu sou a leve segurança
de um peito que pulsa e canta a sua chama
que se levanta e inclina ao teu hábito de pássaro
ou à chuva das tuas pétalas de prata

Se guardo algum tesouro não o prendo
porque quero oferecer-te a paz de um sonho aberto
que dure e flua nas tuas veias lentas
e seja um perfume ou um beijo um suspiro solar

Ofereço-te esta frágil flor esta pedra de chuva
para que sintas a verde frescura
de um pomar de brancas cortesias
porque é por ti que nasço
porque amo o ouro vivo do teu rosto.


António Ramos Rosa

quinta-feira, janeiro 19, 2006

Foz do Douro
















Foto de Luís Amorim




É outra vez abril
- e tão perfeito é o azul
que o estendo ao longo do meu corpo.
Não sei de ninguém tão bem vestido.


Eugénio de Andrade

(Que hoje faria 83 anos e nos continua a vestir com a beleza das suas palavras)

domingo, janeiro 15, 2006

As linguagens





Na cabeça de um homem há muitas línguas a falar diferente
Falam com bocados umas das outras e estão unidas sem saber
Quando um homem pensa sozinho consigo mesmo
E quer tirar da cabeça uma produção útil para todos.

Por exemplo: Penso Rio. É matsi, é water, é água,
É quilos de litros a andar depressa
É uma música da água, é um desenho da água na cabeça.
Posso falar Rio; posso medir Rio; posso desenhar Rio.
Posso tirar o Rio da cama e pôr o Rio acordado num papel
Que é um retrato parecido deste Rio mesmo este.

Isto que faz na cabeça de um homem tirar retrato são línguas
O Rio, a Árvore, o Animal, a Rocha, a Terra, o Sol, o Vento
São as caras da Natureza que as minhas línguas estudam.

A escola Primária Colonial está mal.
A língua das palavras não chega para tudo
É preciso aprender uma língua dos números
É preciso aprender a língua dos desenhos
As três línguas juntas é que são a língua verdadeira do Homem
E depois o Homem já fala à Natureza bem
E pode aprender dela tudo o que há-de ensinar.

Sigo a pista do cabrito: pegadas e capim partido. É desenho isso.
O excremento está fresco ao Sol. Passou pouco. É cálculo aritmético.
Está ali. Não é cabrito. É cabrita. Falei com palavras.
Conheço que não sei pensar nada só numa língua.


Imagem e poema de António Quadros

sexta-feira, janeiro 13, 2006

Sem ti


Foto de AnaG aqui


E de súbito desaba o silêncio.
É um silêncio sem ti,
sem álamos,
sem luas.

Só nas minhas mãos
ouço a música das tuas.


Eugénio de Andrade

domingo, janeiro 08, 2006

Em todas as ruas te encontro





Em todas as ruas te encontro
em todas as ruas te perco
conheço tão bem o teu corpo
sonhei tanto a tua figura
que é de olhos fechados que eu ando
a limitar a tua altura
e bebo a água e sorvo o ar
que te atravessou a cintura
tanto tão perto tão real
que o meu corpo se transfigura
e toca o seu próprio elemento
num corpo que já não é seu
num rio que desapareceu
onde um braço teu me procura

Em todas as ruas te encontro
em todas as ruas te perco


Imagem e poema de Mário Cesariny

segunda-feira, janeiro 02, 2006

Encosta do mar





Este foi o primeiro presente que tive este ano. Obrigada, Jacky .

Obrigada, também, aos que me visitaram e deixaram os seus comentários e votos de Boas Festas.

A todos desejo um feliz ano de 2006. Que todos os vossos sonhos se cumpram.
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