quinta-feira, julho 29, 2010

Este amor não é feito de sangue

Foto de Sistermoon



Este amor não é feito de sangue,
a minha alma não anda nessa rua deserta,
nem vai, pé ante pé, contemplar o teu rosto,
deitar-se em seguida sobre o teu corpo gelado
e limpar-te os olhos do frio
de uma madrugada
impúdica.
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Armando Silva Carvalho
(in O Amante Japonês )
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domingo, julho 25, 2010

Quando ouço ao telefone a voz que brinca

Foto de Jennifer



Quando ouço ao telefone a voz que brinca
e canta, sem saber, os dias novos,
pouco me importam tempo, espaço, luas,
ou maneiras sequer de ser humano.
Vagueio pelo ar, e arranco estrelas
ao cenário sem fim do universo;
e faço pobres contas aos cabelos
depenados no chão, verso após verso.
Nada é real, senão o meu desejo,
nem sei de lei nenhuma que não dobre
a dura mansidão da tua boca;
inventou-nos um deus, para que seja
veloz o lume na manhã sem nome,
e chama viva a voz que nos consome.



António Franco Alexandre
(in Duende)

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terça-feira, julho 20, 2010

Da alma , e de quanto tiver

Foto de Marina Green



Da alma , e de quanto tiver
Quero que me despojeis,
Contanto que me deixeis
Os olhos para vos ver.

Cousa que este corpo não tem
Que já não tenhais rendida;
Depois de tirar-lhe a vida,
Tirai-lhe a morte também.

Se mais tenho que perder,
Mais quero que me leveis,
Contanto que me deixeis
Os olhos para vos ver.





Luís de Camões


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sexta-feira, julho 16, 2010

Nem sempre sou igual ao que digo e escrevo

Foto de Stefan Michalski



Nem sempre sou igual ao que digo e escrevo.
Mudo, mas não mudo muito.
A cor das flores não é a mesma ao sol
De que quando uma nuvem passa
Ou quando entra a noite
E as flores são cor da sombra.

Mas quem olha bem vê que são as mesmas flores.
Por isso quando pareço não concordar comigo,
Reparem bem em mim:
Se estava virado para a direita,
Voltei-me agora para a esquerda,
Mas sou sempre eu, assente sobre os mesmos pés -
O mesmo sempre, graças ao céu e à terra
E aos meus olhos e ouvidos atentos
E à minha clara simplicidade de alma ...




Alberto Caeiro
(in O Guardador de Rebanhos)


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domingo, julho 11, 2010

Metáfora

Foto de HildeG



Escolho o silêncio assunto antigo para
falar deste domingo : descrevê-los
o silêncio o domingo será como
falar da escuridão e que metáfora
mais certa se as há certas, para a ínfima
luz própria metafórica do dia

A tua voz então vem como nave
a si mesma sulcar-se, na penumbra
tornando-se, não sei se mais igual
ou mais diversa do escuro sentido
do sentido, o tema interrompendo
do poema : o silêncio o domingo




Gastão Cruz
(in Diversos 9 - Primavera de 2006)

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quarta-feira, julho 07, 2010

Chegamos onde só chega a alegria




Chegamos onde só chega a alegria
a fraterna raiz deste modo de preservar
os deslumbramentos
a claridade nos dias sombrios
dum corpo desgastado
ao esplendor dum horizonte flutuante
de luz
numa vertente desbastada pelas águas
pretendente a um cais longe atrás dum pássaro
anónimo
que fugiu ao inverno
incandescente
ali perto

E embora não nos seja ininteligível partir
para um grande e fácil desassossego
____ a simples abstracção crepuscular de cores
____ as formas sem fronteiras

vamos atrás duma cigarra cantando
o amor e o encanto duma canção tranquila

(...)




Vieira Calado
(in Viagem através da Luz)

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sexta-feira, julho 02, 2010

Nenúfares

Water lillies (Claude Monet)




Um nenúfar flutua
na mesma água
que a Lua.




Jorge de Sousa Braga
(in Fogo sobre Fogo )


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