terça-feira, novembro 29, 2005

As rosas


Foto de Ana Maria Russo aqui



Quando à noite desfolho e trinco as rosas
É como se prendesse entre os meus dentes
Todo o luar das noites transparentes,
Todo o fulgor das tardes luminosas,
O vento bailador das Primaveras,
A doçura amarga dos poentes,
E a exaltação de todas as esperas.


Sophia de Mello Breyner Andresen

sábado, novembro 26, 2005

Glosa à chegada do Inverno


Foto de Miguel Costa aqui


Ao frio suave, obscuro e sossegado,
e com que a noite, agora, se anuncia
depois de posto, ao longe, um sol dourado
que a uma rosada fímbria arrasta e esfia...

Da solidão dos homens apartado,
e entregue a tal silêncio, que devia
mais entender as sombras a meu lado
que a terra nua onde se atrasa o dia...

Recordo o amor distante que em mim vive,
sem tempo ou espaço, e apenas amarrado
à liberdade imensa que não tive,

e que não há. Como o recordo agora
que a luz do dia já se não demora,
se apenas de si próprio é recordado?



Jorge de Sena

quarta-feira, novembro 23, 2005

A criança






Aberta, discreta
ou desatenta
é como o poeta:
não mente, inventa.



Luís Veiga Leitão

segunda-feira, novembro 21, 2005

Os olhos do poeta



















O poeta tem olhos de água para reflectirem todas as cores do mundo,
e as formas e as proporções exactas, mesmo das coisas que os sábios desconhecem.
Em seu olhar estão as distâncias sem mistério que há entre as estrelas,
e estão as estrelas luzindo na penumbra dos bairros de miséria,
com as silhuetas escuras dos meninos vadios esguedelhados ao vento.
Em seu olhar estão as neves eternas dos Himalaias vencidos
e as rugas maceradas das mães que perderam os filhos na luta entre as pátrias
e o movimento ululante das cidades marítimas onde se falam todas as línguas da terra
e o gesto desolado dos homens que voltam ao lar com as mãos vazias e calejadas
e a luz do deserto incandescente e trémula, e os gestos dos pólos, brancos, brancos,
e a sombra das pálpebras sobre o rosto das noivas que não noivaram
e os tesouros dos oceanos desvendados maravilhando com contos-de-fada à hora da infância
e os trapos negros das mulheres dos pescadores esvoaçando como bandeiras aflitas
e correndo pela costa de mãos jogadas pró mar amaldiçoando a tempestade:
- todas as cores, todas as formas do mundo se agitam e gritam nos olhos do poeta.
Do seu olhar, que é um farol erguido no alto de um promontório,
sai uma estrela voando nas trevas
tocando de esperança o coração dos homens de todas as latitudes.
E os dias claros, inundados de vida, perdem o brilho nos olhos do poeta
que escreve poemas de revolta com tinta de sol na noite de angústia que pesa no mundo.



Manuel da Fonseca

sábado, novembro 19, 2005

Tu e eu


Foto de Bruno Peres aqui


Sou apenas uma pequena pedra da muralha
mais um elo da imensa corrente
mas contigo
tu e eu
temos a força da esperança
contra o vazio do mundo.

.

quinta-feira, novembro 17, 2005

Cantar de amigo




Eu e tu: milhões!...

Entre nós - perto ou longe!
- entre nós rios e mares
montanhas e cordilheiras...

Eu e tu perdidos
nesta distância sem fim do desconhecido.

Eu e tu unidos
para além das cordilheiras
por sobre mares de indiferença
na comunhão de nossos destinos confundidos
- a minha e a tua vida
correndo para a confluência
num mesmo Norte.

Eu e tu amassados
nesta angústia que é de nós,
minha e tua,
e mais do que de nós...

Eu e tu
carne do mesmo corpo
amor do mesmo amor
sangue do mesmo sacrifício!

Eu e tu
elos da mesma cadeia
grãos da mesma seara
pedras da mesma muralha!

Eu e tu, que não sei quem és.
Que não sabes quem sou:

- Eu e tu: Amigo! Milhões...



Joaquim Namorado

sexta-feira, novembro 11, 2005

Memória dum pintor desconhecido


O vendedor (Mário Dionísio)



Os presos contam os dias
eu as horas
nesta prisão maior onde um olhar ficou boiando
e uma voz um som de passos perseguidos
na sombra perseguindo a segurança
fugidia

Na cidade que amo e a sós comigo
é talvez só futuro ou já saudade
com alma bem nascida entre o fragor de máquinas, cimento e energia
atómica indefeso entre irmãos de cárcere demando
a voz que foge os irmãos que não vejo
o brando olhar que guarda o meu desejo
e só consigo
ver o gomoso arrastar das horas e das horas
tantas horas
à baioneta marcadas por uma sentinela
aos quatro cantos da janela
gradeada
do dia-
a-dia onde não há
mais nada

Que nada são os dias e os anos
para um tão grande amor que vou pintando
com o próprio sangue os meus e teus enganos
que há de nascer que há de florir que há de
e há de e há de
quando?



Mário Dionísio

terça-feira, novembro 08, 2005

Os dois sonetos de amor da hora triste


Foto de Vertigo aqui


II

Não um adeus distante
Ou um adeus de quem não torna cá,
Nem espera tornar. Um adeus de até já,
Como a alguém que se espera a cada instante.

Que eu voltarei. Eu sei que hei-de voltar
De novo para ti, no mesmo barco
Sem remos e sem velas, pelo charco
Azul do céu, cansado de lá estar.

E viverei em ti como um eflúvio, uma recordação.
E não quero que chores para fora,
Amor, que tu bem sabes que quem chora

Assim, mente. E, se quiseres partir e o coração
To peça, diz-mo. A travessia é longa... Não atino
Talvez na rota. Que nos importa , aos dois, ir sem destino?


Álvaro Feijó


(Coloquei apenas o segundo soneto, por achar o primeiro, além de belo, extremamente triste)

domingo, novembro 06, 2005

Letra para um hino


Foto de Major Morais de Castro aqui


É possível falar sem um nó na garganta
é possível amar sem que venham proibir
é possível correr sem que seja para fugir.
Se tens vontade de cantar não tenhas medo: canta.

É possível andar sem ser a olhar para o chão
é possível viver sem que seja de rastos.
Os teus olhos nasceram para olhar os astros
se te apetece dizer não grita comigo: não.

É possível viver de outro modo.
É possível transformares em arma a tua mão.
É possível o amor. É possível o pão.
É possível viver de pé.

Não te deixes murchar. Não deixes que te domem.
É possível viver sem fingir que se vive.
É possível ser homem.
É possível ser livre livre livre.


Manuel Alegre

quarta-feira, novembro 02, 2005

Quando o amor morrer


Foto daqui


Quando o amor morrer dentro de ti,
Caminha para o alto onde haja espaço,
E com o silêncio outrora pressentido
Molda em duas colunas os teus braços,
Relembra a confusão dos pensamentos,
E neles ateia o fogo adormecido
Que uma vez, sonho de amor, teu peito ferido
Espalhou generoso aos quatro ventos.
Aos que passarem dá-lhes o abrigo
E o nocturno calor que se debruça
Sobre as faces brilhantes de soluços.
E se ninguém vier, ergue o sudário
Que mil saudosas lágrimas velaram;
Desfralda na tua alma o inventário
Do templo onde a vida ora de bruços
A Deus e aos sonhos que gelaram.



Ruy Cinatti