quinta-feira, setembro 29, 2005

O Sonho


La grande famille ( Magritte)



Pelo Sonho é que vamos,
comovidos e mudos.
Chegamos? Não chegamos?
Haja ou não haja frutos,
pelo sonho é que vamos.

Basta a fé no que temos.
Basta a esperança naquilo
que talvez não teremos.
Basta que a alma demos,
com a mesma alegria,
ao que desconhecemos
e ao que é do dia-a-dia.

Chegamos? Não chegamos?

Partimos. Vamos. Somos.



Sebastião da Gama

terça-feira, setembro 27, 2005

Para atravessar contigo o deserto do mundo


Foto de Mealha aqui


Para atravessar contigo o deserto do mundo
Para enfrentarmos juntos o terror da morte
Para ver a verdade para perder o medo
Ao lado dos teus passos caminhei

Por ti deixei meu reino meu segredo
Minha rápida noite meu silêncio
Minha pérola redonda e seu oriente
Meu espelho minha vida minha imagem
E abandonei os jardins do paraíso

Cá fora à luz sem véu do dia duro
Sem os espelhos vi que estava nua
E ao descampado se chamava tempo

Por isso com teus gestos me vestiste
E aprendi a viver em pleno vento



Sophia de Mello Breyner Andresen

domingo, setembro 25, 2005

Liberdade


Foto de autor desconhecido



Ser livre é querer ir e ter um rumo
e ir sem medo,
mesmo que sejam vãos os passos.
É pensar e logo
transformar o fumo
do pensamento em braços.
É não ter pão nem vinho,
só ver portas fechadas e pessoas hostis
e arrancar teimosamente do caminho
sonhos de sol
com fúrias de raiz.
É estar atado, amordaçado, em sangue, exausto
e, mesmo assim,
só de pensar gritar
gritar
e só de pensar ir
ir e chegar ao fim.


Armindo Rodrigues

sexta-feira, setembro 23, 2005

Dedução


Foto de Baciar


Não acabarão nunca com o amor,
nem as rusgas,
nem a distância.
Está provado,
pensado,
verificado.
Aqui levanto solene
minha estrofe de mil dedos
e faço juramento:
Amo
firme,
fiel
e verdadeiramente.
.
Vladimir Maiakovski

segunda-feira, setembro 19, 2005

Todos os dias


Water lilies ( Monet) aqui


Todos os dias deveríamos ler um bom poema, ouvir uma linda canção, contemplar um belo quadro e dizer algumas bonitas palavras.
Pensar é mais interessante que saber, mas é menos interessante que olhar.


Johann Von Goethe

sexta-feira, setembro 16, 2005

Do rio que tudo arrasta


Colorado of Medusa (Max Ernst) aqui


Do rio que tudo arrasta se
diz que é violento.
Mas ninguém diz violentas as
margens que o comprimem.


Bertold Brecht

quinta-feira, setembro 15, 2005

Os gatos


Foto de Artur Branco aqui


Lindo gato, vem cá, vem ao meu colo;
Encolhe as unhas dessa pata,
E deixa que eu mergulhe nos teus olhos,
Um misto de metal e ágata.

Quando os meus dedos, à vontade, afagam
O dorso elástico, a cabeça,
E a mão se me inebria de prazer
No corpo eléctrico, a apalpá-lo,

Vejo a minha mulher. O seu olhar,
Tal como o teu, querido animal,
Frio e profundo, fende-nos qual dardo,

E da cabeça até aos pés
Um ar subtil, um perfume perigoso
Nadam em torno do seu corpo.


Charles Baudelaire

quarta-feira, setembro 14, 2005

Na noite


Foto de Miguel Costa aqui


Na noite
Na noite
Eu uni-me à noite
À noite sem limites
À noite.

Minha, bela, minha.

Noite
Noite de nascimento
Que me enche do meu grito
Das minhas espigas.
Tu que me invades
Que marulhas, marulhas
Que marulhas a toda a volta
E fumegas, és tão densa
E muges
És a noite.
Noite que jaz, noite implacável.
E a sua fanfarra, e a sua praia
A sua praia ao alto, a sua praia em toda a parte
A sua praia bebe, a sua lei é rei, e tudo se enleia sob ela
Sob ela, sob mais fino que um fio
Sob a noite
A Noite.



Henri Michaux

segunda-feira, setembro 12, 2005

Ausência


Foto de Don Denney aqui


Eu haverei de erguer a vasta vida
que ainda é o teu espelho:
cada manhã hei-de reconstruí-la.
Desde que te afastaste,
quantos lugares se tornaram vãos
e sem sentido, iguais
a luzes acesas de dia.

Tardes que te abrigaram a imagem,
música em que sempre me esperavas,
palavras desse tempo,
terei de as destruir com as minhas mãos.

Em que ribanceira esconderei a alma
para que não veja a tua ausência,
que como um sol terrível, sem ocaso,
brilha definitiva e sem piedade?

A tua ausência cerca-me
como a corda à garganta.
O mar ao que se afunda.


Jorge Luís Borges

domingo, setembro 11, 2005

Fica!


Foto de Major Morais de Castro aqui


Porque o sol brilha
e a manhã se espreguiça
devagar
em prenúncio de outono
Porque o mar continua azul
e há velas no horizonte
leves como voo de gaivotas
Abro os olhos
estendo as mãos
e digo
Fica!

sexta-feira, setembro 09, 2005

Para pintar o retrato de um pássaro


Foto de autor desconhecido


Primeiro pintar uma gaiola
com a porta aberta
pintar depois
algo de lindo
algo de simples
algo de belo
algo de útil
para o pássaro
depois dependurar a tela numa árvore
num jardim
num bosque
ou numa floresta
esconder-se atrás da árvore
sem nada dizer
sem se mexer...
Às vezes o pássaro chega logo
mas pode também ser que leve
muitos anos
a pressa ou a lentidão do pássaro
nada tendo a ver
com o sucesso do quadro.
Quando o pássaro chegar
se chegar guardar o mais profundo silêncio
esperar que o pássaro entre na gaiola
e quando já estiver lá dentro
fechar lentamente a porta com o pincel
depois
apagar uma a uma todas as grades
tendo o cuidado de não tocar numa única pena do pássaro.
Fazer depois o desenho da árvore
escolhendo o mais belo galho
para o pássaro
pintar também a folhagem verde e a frescura do vento
a poeira do sol
e o barulho dos insectos pelo capim no calor do verão
e depois esperar que o pássaro queira cantar
se o pássaro não cantar
mau sinal
sinal de que o quadro é ruim
mas se cantar bom sinal
sinal de que pode assiná-lo.
Então você arranca delicadamente
uma das penas do pássaro
e escreve seu nome num canto do quadro.



Jacques Prévert
(trad. Silviano Santiago)

terça-feira, setembro 06, 2005

Em seu lugar


Foto de Rui Gama aqui


Raio de sol entre dois límpidos diamantes
E a lua a se fundir nos trigais obstinados

Uma imóvel mulher tomou lugar na terra
No calor ela se ilumina lentamente
Profundamente como um broto e como um uni fruto

Nele a noite floresce o dia amadurece.


Paul Éluard
(tradução de Manuel Bandeira)

domingo, setembro 04, 2005

Livre


The promise (Magritte)


Sózinha na tarde de Verão tenho as asas que o sonho dá, viajo através da promessa dos dias... voo.
Sem tempo e fora do espaço... eu! Livre!

sábado, setembro 03, 2005

Escrito com tinta verde


Foto de autor desconhecido


A tinta verde cria jardins, selvas, prados,
folhagens onde cantam letras,
palavras que são árvores,
frases que são verdes constelações.

Deixa que minhas palavras , ó branca, desçam e te cubram
como uma chuva de folhas a um campo de neve,
como a hera à estátua,
como a tinta a esta página.

Braços, cintura, pescoço, seios,
a fronte pura como o mar,
a nuca de bosque no outono,
os dentes que mordem um fio de erva.

Teu corpo constela-se de signos verdes
como o corpo da árvore de recenetos.
Não te afronte tanta pequena cicatriz luminosa:
olha o céu e sua verde tatuagem de estrelas.


Octávio Paz
(tradução de Luís Pignatelli)